domingo, 15 de fevereiro de 2009

Ginga Pop - MARACATU

Nasceu na África, chegou ao Brasil nas caravelas, meteu-se nos matos e mocambos, mesclou-se com tapuias e tupis. Começou como história real, virou devoção religiosa e já conta mais de século de vida profana, renovando-se a cada carnaval. Nas últimas décadas, extrapolou os três dias de Momo, entrou para a universidade e faz parte da contemporânea cena musical


Eleuda de Carvalho
da Redação - Jornal O POVO - 05 de Fevereiro de 2005


Minha embaixada chegou. Deixa meu povo passar. Meu povo pede licença. Pra na batucada desacatar (Assis Valente, carnaval de 1934)


Coisa de negro. De negro e branco. De negro, branco e índio.
Totalmente brasileiro, o maracatu é uma das mais bonitas expressões musicais, cênicas e coreográficas do nosso carnaval.
Em especial, no Ceará e em Pernambuco.

Maracatu - O nome, dúvidas de filólogos. Mário de Andrade, o poeta modernista e profundo pesquisador da música popular brasileira, sugere uma origem ameríndia.
Mescla de maracá, o instrumento musical e religioso de tapuias e tupis, e catu, que significa lindeza. Ou, ainda, de mará, guerra. Guerra bonita. Guerra de brincadeira. Resquício das inúmeras, violentas lutas de negros e índios, nesta imensidão do Novo Mundo, contra o domínio de Portugal.


Porto de Ceuta, 1415.

As naus portuguesas chegam ao litoral norte da África pela primeira vez. A viagem faz parte do grande projeto ibérico de reconquista, isto é, da expulsão dos mouros da península.
Porém, os lusitanos não se conformaram em somente tanger os muçulmanos do seu território.

Com apoio da igreja católica, se investiram de cruzados e desbravaram o mundo, a converter infiéis. Já em 1444 acontece a primeira venda pública de escravos em Lisboa.
Dois anos depois, os portugueses aproavam no golfo da Guiné. Negócio rendoso, este da escravaria.


Para o rei e para o papa. Em 1452, o apresamento dos negros da África é reforçado por bula de Nicolau V, que escreveu ao monarca de Portugal: ''Nós lhe outorgamos, pelos presentes documentos, com nossa autoridade apostólica, plena e livre permissão de invadir, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e qualquer outro incrédulo ou inimigo de Cristo, onde quer que seja, como também seus reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades e reduzir essas pessoas à escravidão perpétua''.


Em 1482, o navegador Diogo Cão chega ao reino do Congo.
Escreveu uma carta ao rei: ''Na era da criação do mundo de 6881, do nascimento de Nosso Senhor, o mui alto, mui excelente e príncipe el-rei D. João II mandou descobrir estas terras e pôr este padrão por Diogo Cão, escudeiro da sua casa''.

Cão envia uma embaixada de quatro dos seus homens ao manicongo, o rei, na capital de seu reino, a cidade de Mbanza. Como não voltassem, prendeu o mesmo tanto de negros e os levou a Portugal, para serem catequizados e devidamente batizados.

Voltando em 1484, mandou um deles a Mbanza, ao encontro do manicongo. Um cronista da época registrou: ''Todos os grandes do reino estavam em Mbanza. Os portugueses entraram na cidade. O rei estava sentado num trono de marfim colocado sobre um estrado. Coube aos frades entregar ao rei os presentes do monarca português - louças e talheres em ouro e prata; alfaias do culto; pratos de ouro e prata; brocados em peças, panos de seda; veludos de carmezim; painéis de boa pintura; rabos de cavalo guarnecidos de prata. Finalmente surgiu uma cruz de prata, benzida pelo papa Inocêncio VIII. Os portugueses ajoelharam-se. O rei, que tinha o tronco nu, um rabo de cavalo a pender-lhe do ombro esquerdo e manto de damasco a tapar-lhe os pés, inclinou-se. Seguiu-se depois uma ruidosa festa, à maneira africana''. É desses encontros que vem a tradição da embaixada.



Nem todos os manicongos foram tão receptivos quanto aquele. Até porque Portugal não respeitava os tratados nem a receptividade dos nativos. Aprisionavam membros da casa real. Destruíam aldeias e cidades. Tomavam o ouro, o marfim, as peles preciosas. Um clima de revolta no ar. Por volta de 1600, o reino do Congo tem à frente uma rainha, Nginga Nbandi, ou simplesmente rainha Ginga.

Ela foi batizada com o nome de Ana de Souza em 1622 mas, não suportando os desmandos da coroa portuguesa, morreu guerreando em defesa de seu reino. É esta rainha guerreira que vai virar o símbolo principal, embora encoberto, das festas de coroação dos reis do Congo, o Auto dos Congos - brincadeira permitida pelo portugueses tanto em Portugal quanto na imensa colônia da América. Festejo com toda a pompa no adro das igrejas de Nossa Senhora do Rosário. Um momento de saborear a liberdade e a glória perdidas na escravidão. A festa liberava os negros, ao menos por um dia.

Do auto dos congos dos séculos 17 e 18, surgiram os maracatus. No Ceará, há registro deles desde o século 19.
Entraram século 20 adiante, animando os carnavais. Hoje em dia existem em Fortaleza os maracatus Az de Ouro, onde pontifica a figura majestosa do mestre Juca do Balaio; o Vozes d'África, Nação Iracema, Nação Baobab (de Raimundo Praxedes), o Rei de Paus, o Rei Zumbi, o Kizomba (onde brinca Descartes Gadelha) e o estreante Nação Fortaleza.

O maracatu mereceu registros de pesquisadores como Mário de Andrade, Câmara Cascudo e do maestro Guerra-Peixe. Em meados dos anos 60, Jorge Mautner compôs ''Maracatu Atômico'', gravado por Gilberto Gil.

Na década de 70, Alceu Valença, em Pernambuco, e Ednardo, no Ceará, criaram maracatus com levada pop de guitarras. O ritmo ganhará novo e definitivo impulso nos anos 90, com Chico Science e seu Nação Zumbi, que fundiram maracatu rural e hip hop.

Por aqui, Calé Alencar também se dedicava às loas, tanto nos seus discos e shows quanto puxando o cortejo na avenida. O ritmo daqui, tradicionalmente mais ralentado, vem se modificando aos poucos, com introduções de músicos como Descartes Gadelha, que acelerou a levada. A batida dos tambores e a pancada do triângulo de ferro também estão na matriz de uma dezena de grupos e bandas, como Eletrocactus, Dr. Raiz, Kauandes, Kapruk, Soul Nêgo, Dona Zefinha, Batikum, Moraca, Tambores de Guaramiranga, Brincantes Cordão do Caroá, Caravana Cultural e Vigna Vulgaris. Todos com muito ritmo, muita garra, muita beleza. E muita, muita ginga.

Colaborou - Teresa Monteiro

Gamela da nossa mistura.

O cantor e compositor cearense botou o maracatu pra tocar no rádio e na tevê. Com Pavão Mysteriozo, a batida do ferro e o poema de cordel estavam todos os dias na Globo.

Maracatu Estrela Brilhante
Maracatu o teu brilho errante
Gamela da nossa mistura
Tão linda tão mista e tão pura
Maracatu
Garra maracá já guerreiro
Batuque ferro e ganzá
A flecha cravada no céu brasileiro
Infinitamente cantar, cantar, cantar

''Maracatu Estrela Brilhante'', de Ednardo - disco Imã.

A UFC fervilhava, naqueles fins dos anos 60. Aliás: o mundo inteiro ardia com a chama acesa por uma geração insubmissa que ousou subverter os costumes, demolir o poder.
Por estas bandas de cá, esse fogo queimava. Parte dos moços escolheu o sonho da psicodelia ao pesadelo que se anunciava nos clarins dos quartéis. Outra parte preferiu o coletivo à singularidade. Teve também os que costuraram o roto tecido social com as linhas da arte. Mesclando os ingredientes do inconformismo e o combate à velha ordem, criaram acordes novos, dissonantes.

Falaram de tudo isso, do momento, da rebeldia, da força da juventude. É nessa encruzilhada de tempo e espaço que emerge o chamado Pessoal do Ceará. Dentre eles, o estudante de química José Ednardo Soares Costa Sousa.

No princípio, tocaram seus violões, soltaram a voz nos centros acadêmicos, daí aos bares da cidade, aos botecos da beira do mar. Que som é esse?

Um dia, tiveram que sair da aldeia. Brasília. São Paulo. Rio de Janeiro. Pra ''voltar em vídeo-tape e revistas supercoloridas'', como cantou Ednardo em ''Carneiro'', faixa de abertura do seu primeiro disco solo.
Primeiro, veio acompanhado, em 1973. Na capa do LP diferente, a almofada e os bilros da rendeira.
Era o Pessoal do Ceará: Ednardo, Rodger Rogério e Téti (o outro título do disco é Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem). Ednardo abre a cena com o maracatu ''Ingazeiras'', que ele fez em homenagem ao artista plástico Aldemir Martins. Depois, outro maracatu assinado por ele, ''Terral''.
Aí vêm ''Cavalo-Ferro'' (Ricardo Bezerra e Fagner), Rodger Rogério cantando ''Curta-Metragem'' (dele e José Evangelista, o Dedé), Téti em ''Dono dos teus olhos'', de Humberto Teixeira.
E ainda tem outro maracatu do Ednardo, ''Beira-Mar''. Pronto. Do asfalto carnavalesco, o maracatu cearense ingressava pela porta da frente na MPB.
Em 74, com O Romance do Pavão Mysteriozo, Ednardo consolida seu caminhar.
Neste disco emblemático, além da faixa título, inesquecível, tem ''Dorothy Lamour'' (de Petrúcio Maia e Fausto Nilo) e ''A palo seco'' (de Belchior). Em 76, ''Pavão Mysteriozo'' é tema de abertura da novela Saramandaia, de Dias Gomes, e Ednardo lança outro LP.

O nome, um luxo - Do boi só se perde o BERRO e é justamente o que eu vim apresentar.
Aqui, a história cearense serve de mote pra canções como ''Artigo 26'' e ''Padaria Espiritual'', ambas sobre o movimento literário que agitou Fortaleza no final do século 19;

Tem ''Passeio Público'', para os confederados, e o maracatu ''Longarinas''. No disco de 77, O Azul e o Encarnado, Ednardo resgata o pastoril (entre as faixas, salta um ritmo maranhense, em ''Boi Mandingueiro''). A reverência aos ancestrais está presente em Cauim, de 78, também título de filme dirigido por Ednardo.

Em 79, o disco Ednardo inclui a saborosa ''A manga-rosa'', a lírica ''Flora'', e a instrumental ''Araguaia''. Parcerias em ''Lagoa de Aluá'' (com Climério e Vicente Lopes), ''Enquanto engoma a calça'' (dele e Climério), além de ''Lupiscínica'' (de Petrúcio Maia e Augusto Pontes).
Em 80, Ednardo lança o solo Imã e o duplo Massafeira (fruto do evento homônimo, que reuniu o Pessoal do Ceará à nova geração - Calé Alencar, Chico Pio, Stélio Valle, Pachelly Jamacaru, os irmãos Fonteles, além da presença luxuosa de Patativa do Assaré).

Ainda nos anos 80, o artista lança Terra da Luz, outro Ednardo e Libertree.
Volta a gravar em 91, o ao vivo Rubi.
Em 2000, Única Pessoa.
Em 2002, lança, com Belchior e Amelinha, um segundo Pessoal do Ceará.
Assina também as trilhas sonoras dos filmes Tigipió, de 85, Luzia-Homem, de 87 (no qual também atua), e O calor da pele, de 94.

Ednardo nasceu em Fortaleza, no dia 17 de abril de 1945. À beira dos 60 anos, o artista continua criando, encantando e influindo em novas gerações por todo o Brasil.

Eleuda de Carvalho

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ENTREVISTA - Concedida por Ednardo à Eleuda de Carvalho - Publicada no O POVO em 25 Fevereiro de 2005.

O POVO - Antes de falar sobre sua música e de como incorporou à sua linguagem a batida do maracatu cearense, qual foi a primeira imagem do maracatu que você viu, ouviu? Por exemplo, o Estrela Brilhante, que você homenageou na canção.

Ednardo - Não deve passar despercebido, nem aos olhos mais desatentos, o simbologismo do maracatu em suas cargas conceituais. Força cósmica, o maracatu perpassa incólume ao tempo. No caldeirão brasileiro de raças, somos índios, pretos, brancos, amarelos, vermelhos, marrons, sararás, caboclos, cafuzos, crioulos.
A característica notável e ímpar do maracatu cearense, além da presença de nosso povo miscigenado, é a atitude guerreira na síntese de resistência em festa de libertação e manutenção de culturas.
Além do interessante vestuário, os rostos pintados, a dança, os instrumentos de percussões onde adicionam o triângulo de maracatu, fabricado com sabedoria de tonalidades harmônicas, são todos estes itens elementos diferenciais, significativos e inconfundíveis.

Na infância, vi pela primeira vez os maracatus em Fortaleza: Estrela Brilhante, Ás de Espadas, Ás de Ouro, vinham faiscantes pela rua que não tinha eficiente iluminação pública, causavam efeito especial à auto-iluminação dos blocos feita por dezenas de lampiões, candelabros de lamparinas revestidos com tênues tecidos vermelho-laranja-amarelo que tinham efeitos de tochas de fogo, faziam uma espécie de cordão que circundava o bloco.

Vinha o baliza com uns passos gingados e um bastão nas mãos, sua dança uma mistura da pisada indígena com a malemolência africana, o abre-alas para os morubixáuas e suas índias e uma grande ala de índios, os pajés faziam circunvoluções, um cheiro de ervas aromáticas no ar, aí vinha a corte real, com a calunga, os grandes leques de abano, o balaieiro com frutas da região incrivelmente equilibradas na cabeça sem por as mãos enquanto gingava.

Depois soube que tinham rituais, primeiro se reuniam no Parque da Liberdade (Cidade da Criança, em frente à praça Coração de Jesus), depois juntavam-se os blocos na praça do Passeio Público e começavam a bater tambores, entoar loas, de longe a gente escutava a preparação e quando o maracatu passava tinha tal emoção contagiante, o grave dos tambores, o contraponto com o timbre metálico agudo dos triângulos.

OP - Fale do Pavão Mysteriozo, o folheto, e de como você criou, a partir dele e com a pancada do maracatu, uma das mais emblemáticas músicas do Brasil, tema de uma novela surrealista do Dias Gomes, Saramandaia (1976).

Ednardo - Com um pé na realidade nas cenas e culturas do Ceará, e outro nas realidades urbanas, Fortaleza, São Paulo, Rio, aprendizado e estradas, informações amplas e descobrindo outras. O Nordeste brasileiro tem confluência com a tradição ibérica, hoje em dia, mesmo os mais novos - que ainda não saibam onde estão pisando - é bom que se liguem no prosseguimento do que foi construído por seus antecessores de todas as raças.
O folheto de cordel do Pavão Mysteriozo é uma destas consciências de que artistas são depositários da sabedoria popular, devemos procurar entender estes ensinamentos, podemos dar nosso grau conforme momento e lugar, atuamos no emblema contemporâneo do mundo. Apenas dei forma, ritmo e voz, concretizando em sons o que todos já sabem, e podiam estar esquecidos, como se escolhe flores, palavras e energias para ofertar a quem estiver aberto para receber.

OP - O maracatu era, até você capturar em pleno vôo este misterioso e belo pavão, umas canções do Capiba, quer dizer, se alguém sabia o que era, era via Pernambuco. Tanto que muita gente ainda pensa que o nosso maracatu é derivado do maracatu de lá, trazido na década de 30 pelo folião Pedro Boca Aberta, depois de um carnaval que ele passou no Recife.
O escritor cearense Gustavo Barroso, no seu livro de memórias Coração de Menino, relembra o pavor que tinha da batida lenta dos maracatus no centro de Fortaleza, fala das caras tisnadas, isto recordando fatos de 1880, por aí.

Ednardo - O maracatu do Ceará existe há bastante tempo. Ao perceber sua beleza, trabalhei para criar uma das possibilidades de abrir escaninhos locais onde eram mantidos e mostrar para um maior número de pessoas.

Se tão antigo em organizações de blocos quanto o de Pernambuco, é interrogação que será mais esclarecida quando fizerem estudos detalhados, mas esta espécie de ''simbiose estética'' está entranhada em nossos arquétipos culturais e raciais, tem visíveis diferenciações, leva a crer que é pouco provável que tenha sido simplesmente ''importado'' de outro estado, isto pareceria estratégia de exclusividade sobre o maracatu.

O sincretismo religioso que acontece no Brasil entre as civilizações ameríndias, européias e africanas desde o descobrimento à atualidade não pertence a um estado definido por fronteiras físicas, está onde estão pessoas de diferentes credos e raças. Existem versões sobre o sincretismo nos diversos aspectos do cerimonial, estético, doutrinário das teorias místicas relacionadas com a formação do mundo e conjunto de divindades que formam a história das religiões.

Uma delas, seria a forma da civilização dominante impor sutilmente sua própria religião e cultura aos dominados e a outra, da cultura dominada burlar a dominante, fingindo adorar seus deuses, mas na realidade venerando suas próprias entidades, associando umas às outras. Sabe-se dos cortejos negros das irmandades religiosas do Crato, Icó, registrado por Eduardo Campos, Sérgio Pires, Gilmar de Carvalho, e também nas memórias de Gustavo Barroso.

Mas em nenhum momento o pessoal que faz o maracatu cearense tem dúvidas que isto pertence a eles, nesta mistura entre o sagrado e o profano, entre o sonho e a realidade.

OP - Diferente dos dois estilos do maracatu do Pernambuco, o mais do candomblé, de Nação chamado, e o mais acaboclado da Zona da Mata - mas ambos com um ritmo acelerado.
Já o maracatu cabeça-chata tem esta coisa lenta, lenta, lenta, linda, quase uma latomia, um bendito pungente, som hipnótico, uma tristeza pungente marcada pela batida poderosa no triângulo de ferro.

Ednardo - O maracatu cearense não tem viés de tristeza e severidade, são palavras que serviriam para o equívoco de tese que alguns defendem para retirá-lo do carnaval e colocá-lo no folclore, como objeto de pesquisa no passado.
O maracatu cearense tem a força da resistência e alegria.

Filmando Cauim em Fortaleza, na parte do roteiro do filme realizada no carnaval de 1977, um dos focos no maracatu cearense, um repórter foi me entrevistar em plena ação de filmagens: - Você não acha inadequado e triste o maracatu cearense, seria melhor retirá-lo do carnaval.
Na época, faziam campanha para o carnaval cearense se assemelhar às escolas de samba do Rio.

No insight do momento mostrei que os componentes do maracatu estavam desfilando com rostos de felicidade para o público e não para a câmera.
Perguntei: onde você está vendo tristeza? Lembro que conversando com Descartes Gadelha (72), ele junto com amigos estavam formatando a Escola de Samba Ispáia Brasa, quando falou de concepções rítmicas que forneciam uma identidade misturando batuques indígenas com negros, eu disse que era um achado fenomenal e quando possível levasse para o maracatu do Ceará.

Eu já havia dado uma acelerada rítmica em alguns maracatus que gravei em discos, Descartes com outros amigos formataram o Maracatu Nação Baobab, que revolucionou o maracatu cearense e também rendeu críticas absurdas. Falavam que ele estava descaracterizando o maracatu. Ora, logo ele, iluminado com luz intensa!

OP - O que você pode falar sobre a geração manguebeat, o Chico Science juntando maracatu e hip hop e influenciando toda uma nova galera?
Aqui, você sabe que seu trabalho, em particular, está no âmago da rapaziada que usa os ritmos populares numa linguagem atual. Mas ninguém fala muito. Como é esta história do santo de casa não fazer milagres?

Ednardo - Maracatu é célula básica, uma das vertentes rítmicas da música brasileira, célula tronco, fornece a seiva para outras transformações.
Quando o pessoal do Ceará e Pernambuco utilizam estas informações, é para continuar a linha evolutiva da música brasileira, de seus ícones ancestrais à atualidade.
Desde as primeiras músicas gravadas em meus discos, existem vários maracatus, em diversas nuances: ''Terral'', ''Pavão Mysteriozo'', ''Longarinas'' (anos 70); ''Ser e Estar'', ''Ponto de Conexão'' (anos 80), em abordagens desde maracatus lentos aos acelerados.

O Chico e a valorosa geração manguebeat forneceram suas contribuições ao maracatu de Pernambuco, lembro que Ariano Suassuna criticou Science e Nação Zumbi, mas a moçada de Pernambuco gostou e depois Suassuna se rendeu à evidência.

Também vamos dizer viva a Descartes Gadelha, que antes do Science teve coragem de misturar e acelerar os ritmos e colocar o bloco na rua, vivas ao Calé Alencar, Pingo de Fortaleza, Dilson Pinheiro, pela continuidade do maracatu tradicional e pelo zelo de registros, e a todos os mestres do maracatu cearense e seus trabalhos que se estendem na esfera de preocupações sociais.

Tenho consciência do alcance das músicas que faço e seus naturais limites. Foram realizadas com objetivos amplos, mas também simples vontade de cantar. Sei que estão no âmago das novas galeras, mas não penso em alimentar expectativas em histórias de santos de casa e milagres. Sigo compondo e cantando, o restante fica por conta de vocês.



OP - No I Festival de Violeiros e Cantadores (outubro de 2004, em Quixadá e Quixeramobim), quando você subiu ao palco e começou a cantar - e olhe que você rearranjou suas composições, inclusive, o ''Pavão Mysteriozo'' - todo mundo cantou junto. Como é criar uma música que ultrapassa duas, três décadas?

Ednardo - Em shows pelo Nordeste, em Teresina, encontrei mestre Luiz Gonzaga, sorriso estampado no rosto e voz forte chamando: - Ednardo venha cá, ouvi dizer que você não está cantando ''Pavão Mysteriozo'' nos shows, faça isso não meu filho, você foi abençoado pelo povo, sucesso genuíno.
Até hoje canto ''Asa Branca'' porque o povo pede, não deixe de lado essa música, gosto muito dela e o povo também. Foi ensinamento de mestre.

No Festival de Violeiros e Cantadores, ouvi de novo os mestres (entre muitos que tenho) e coloquei no roteiro esta e outras músicas de meu repertório, também abençoadas pelo povo.
Os arranjos atuais partem principalmente da compreensão dos arranjos originais e também pela leitura de novos músicos cearenses da banda que me acompanha, confio em suas sensibilidades, são excelentes profissionais, os acordes e ritmos, tudo passa por minha concordância.

Ao constatar que ultrapassam gerações, duas, três décadas, permanecendo íntegras e significantes, penso que é porque assim foram feitas. Posso me considerar um sujeito de sorte e de forma geral querido pelo público, além do mais, minhas músicas, quando analisadas pelo povo e críticos especializados, pelo que percebo, fornecem sensação de que não fugi da raia de meu tempo e espaço e, segundo atestam, continuam servindo de faróis para muitos.

OP - A gente aqui vê você menos do que desejaria. ''Amanhã, se der o carneiro/ vou-me embora daqui pro Rio de Janeiro...''. E você foi. Bate a saudade? Como é ver o Ceará de longe? Você pensa em voltar, ou só ''em vídeo-tape''?

Ednardo - Também desejaria que nossas cidades nos vissem e ouvissem muito mais, que o foco de atenções tivesse identidades próprias, não esperasse ver ou ouvir primeiro seus artistas em outros locais, principalmente no exterior, para depois reconhecê-los como legítimos representantes de nosso povo.

A pergunta, mesmo específica e dirigida, cabe amplamente à grande parte dos artistas brasileiros. Mas as respostas, talvez, seriam mais esclarecedoras se fornecidas pelos que articulam a mídia e meios de comunicação.
Seria legal que nossos meios de comunicação, nossos governantes, tivessem orgulho de seus artistas, que são antenas da raça, e nos tratassem melhor para não sermos forçados a cada instante a dar nomes aos bois que atravessam os trilhos da música brasileira, hoje em dia mais respeitada no exterior que no Brasil.

Mas estou mais perto de minha terra que muitos que aí residem. É claro que sempre bate saudades de Fortaleza, mas como voltar pra uma cidade da qual nunca saí?

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Sustenta a Pisada!

O registro mais antigo do maracatu recua ao ano de 1711, num carnaval (à época dizia-se entrudo) em Olinda. Era o ancestral dos famosos maracatus de nação, da folia pernambucana, uma estilização dos autos de congos.
Nação aí é sinônimo de etnia ou povo africano - nação angola, nação congo, nação bantu. Do nação participam entre 30 e 50 figuras no cortejo real, começando pelo porta-estandarte, com suas vestes ao modo da corte do rei francês Luís XV.
Ao lado dele, vem a baliza, com seu requebrado, sua graça. Geralmente, uma moça. Em seguida vêm as damas do paço (isto é, as mulheres nobres que circundavam a rainha, no paço ou palácio).
Uma delas conduz a boneca chamada calunga, portadora da religiosidade e representando as entidades espirituais. Depois, outros personagens da corte, o duque e a duquesa, um casal de príncipes e uma das figuras mais importantes e mais diretamente ligadas à parte histórica que originou, depois, a estilização no auto dos congos: o embaixador.

A corte abre alas para o rei e a rainha, devidamente coroados, vestindo seus mantos de veludo rebordados de pedrarias, carregando solenes o cetro e a espada. Rei e rainha são protegidos por um imenso guarda-sol, oriundo da tradição árabe.
Para evoluir, o nação é animado por vários tambores grandes (zabumbas), médios (alfaias), caixas e taróis, ganzás e o gonguê (um só ou um par de sinos, percutidos com uma vareta de metal).
Completando o cortejo, a ala das baianas, com suas imensas saias rodadas, e os caboclos, representando as etnias indígenas, vestidos de pena e estalando pequenos arcos e flechas.
Em Pernambuco, o maracatu nação também é chamado de baque virado.
No Ceará, o cortejo do maracatu assemelha-se ao de nação pernambucano, no figural e instrumentação, mas difere por algumas características singulares, quais sejam - o rosto dos brincantes, pintado de preto, a figura do balaieiro, com o enorme cesto de frutas equilibrado na cabeça, os defumadores, aspergindo incenso para abrir os caminhos, e o triângulo de ferro, marcando o compasso.

Aqui também é fundamental a boneca, igualmente chamada de calunga. Mais recente é o maracatu rural, ou de baque solto, que nasceu nos canaviais da Zona da Mata pernambucana já em meados do século passado.
Também são conhecidos por maracatu de orquestra, por contar com um grupo de músicos que utilizam instrumentos metálicos de sopro, como os trombones, saxes e cornetas.
No figural, destaque para os caboclos de lança, portando vistosas golas terminadas por chocalhos na parte de trás, e as cabeleiras imensas de ráfia colorida. Eles costumam usar óculos espelhados e brincar com uma flor presa entre os dentes. O mestre canta a palo seco (isto é, sem acompanhamento instrumental), respondido pelo coro feminino e o troar dos chocalhos, apitos e demais instrumentos.

O canto do mestre é improvisado. Além dos metais, o cortejo é animado por gonguê, ganzá, tarol, cuíca, surdo e zabumba. Confira alguns instrumentos percussivos que fazem parte dos cortejos.

Eleuda de Carvalho e Tereza Monteiro

ABÊ - É um instrumento artesanal, feito de cabaça recoberta por uma ''saia'' de contas ou miçangas. Quando friccionadas, fazem um som que lembra a palavra xequerê, como também o instrumento é conhecido.

AGOGÔ - Instrumento de percussão em ferro, de origem africana. O nome é nagô, significando sino. O agogô também está presente nos cerimoniais do candomblé.

ALFAIA - É um tambor grande, mais alto que o zabumba mas de circunferência um pouco menor, revestido por couro de bode. Seu som grave segura o baque e repercute direto com as batidas cardíacas. É o mais orgânico dos tambores, justamente por bater no compasso do coração. É tocado com duas baquetas.

CAIXA - Tambor revestido com pele natural nas laterais. De tamanho pequeno, pende do corpo do tocador à altura do umbigo. O som produzido é intermediário entre o tarol e a alfaia. No Ceará, chama-se também caixa-de-guerra.

CAXIXI - De origem indígena, é um chocalho feito de palha trançada com a base de cabaça, cortada em forma circular e a parte superior reta, terminando com uma alça também de palha, por onde o tocador passa os dedos da mão, menos o polegar. O caxixi também é muito utilizado junto com o berimbau, na capoeira.

GONGUÉ - Ou gonguê. É composto por duas chapas de ferro fundido com aço e ligadas entre si. O instrumentista segura o gongué por um cabinho metálico e o percute com um bastãozinho de madeira.

TRIÂNGULO - Mais característico elemento percussivo do maracatu cearense, o triângulo é feito com uma peça de ferro larga e pesada de chassi de caminhão. Ao contrário dos triângulos convencionais, seu som é grave, profundo, solene. Na hora em que o maracatu aponta na avenida, é justamente a poderosa batida no triângulo que faz todos os olhos se voltarem na sua direção. Embora com as inovações dos últimos anos, que aceleraram o ritmo, até os anos 80 mais compassado, o triângulo ou simplesmente ferro mantém-se como a marca da originalidade neste cortejo que nasceu longe, na África, lá no século 16.


Batendo tambor

A levada do bumbo e a marcação do ferro, que caracterizam o maracatu cearense, estão no balaio sonoro de três gerações que fazem música em Fortaleza, desde os anos 70.

Desde os anos 70, com o Pessoal do Ceará - e especialmente com Ednardo - o maracatu escapoliu dos três dias de folia para contribuir e singularizar a música feita por estas bandas.
A geração 80 teve uma participação fundamental nesta levada.
Desta década, o mais ligado à tradição e, em particular, ao maracatu, é Carlos Alberto Alencar, o Calé.
Através do selo Equatorial (Nossa História em Música e Letra), o artista vem resgatando valores de há muito esquecidos, como Lauro Maia, que criou o balancê junto com o violonista Aleardo Freitas. Via Equatorial, Calé Alencar lançou uma caixinha com cartões postais de fotografias dos maracatus da década de 50. Outro trabalho realizado no formato cartões apresenta o cortejo talhado no taco da xilogravura (parte deles ilustra esta edição). ''Tô inaugurando uma nova etapa desta minha participação no mundo do maracatu.

Estamos lançando este ano o Nação Fortaleza, que vai se apresentar pela primeira vez.
Não é apenas um trabalho pra desfile, mas com a consciência de um grupo de dança de maracatu, em todos os vetores que isto pode ser compreendido, a cidadania, o exercício da arte, da capacitação, do design, do artesanato, a costura, pintura, a musicalização, a compreensão da dança e da sua história, origem e evolução'', conta Calé, atual presidente da Federação das Agremiações Carnavalescas do Ceará.

O Nação Fortaleza, formado basicamente por crianças e jovens, traz um ''batuque bastante singular'', diz Calé. ''Fizemos o desenho das caixas, dos surdos e bumbos, dos chocalhos. Conservamos a batida dos ferros. É uma contribuição minha a uma identidade rítmica do maracatu Nação Fortaleza, inspirado nos ferros do Az de Espadas, que surgiu aí no início do anos 50.
Mas dei mais valocidade ao batuque, inclui ganzás. No tema da nossa loa, pensamos em realçar a figura da rainha Ginga.
Ela é símbolo de resistência, de heroísmo, de bravura, da mulher guerreira, personificada na rainha do maracatu. Na loa 'Ginga, rainha da gente', é como se chamássemos a rainha pra ver o figural que vai homenageá-la''.

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Nota - O material desta publicação é bastante extenso e ilustrado com fotos e desenhos de xilogravuras, mereceu um caderno inteiro do Jornal O POVO de Fortaleza. Para os que quiserem acessar o teor completo, a melhor forma é entrar em contato com com o setor deste jornal, responsável pelo armazenamento destas informações.
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Cumplicidade nas Políticas Culturais

Victor Hugo, o escritor francês, traduziu para a sua língua a obra do maior dramaturgo inglês e, de arremate, o homenageou com o mais poético e sensível ensaio humanístico que já tive a oportunidade de ler: Shakespeare. Um gênio reconhecendo o outro.

Assim procedendo, o autor de ´Os Miseráveis´ mostrou-se coerente com um dos pensamentos desenvolvidos no escrito, ao comparar as dinâmicas de avanço das ciências e das artes, segundo o que podia observar na metade final dos anos 1800.

Para ele, a lógica de progresso das ciências estaria na superação; a das artes na acumulação. Queria dizer: um cientista se firma quando desconstitui o que outro elaborou, como aconteceu gritantemente com Copérnico e Ptolomeu, quando aquele, desvelando adequadamente o sistema solar, implodiu a tese de que a Terra era o centro do universo.

No âmbito das artes, este sentimento de destruição do anterior, se existe, não tem cabimento, porque, por exemplo, o florescimento de Shakespeare não reclamou a superação de seu contemporâneo Cervantes, de seu antecedente Sófocles ou de seu póstero Machado de Assis.

O campo da cultura é, por excelência, o ambiente da pluralidade e do acúmulo.
Na atualidade de nosso país, os valores referidos, aliás, foram formalmente adotados pela Constituição da República, não apenas para as artes, mas para todo o campo cultural, ao assegurar ´a todos´, ´aos grupos participantes do processo civilizatório nacional´, ´aos diferentes segmentos étnicos´, o pleno exercício dos direitos culturais que, em considerável dimensão, são de responsabilidade do Estado, o qual deve atuar, no cumprimento de seu papel, em ´colaboração com a comunidade´.

Vê-se que Estado, sociedade e comunidade são responsáveis solidários pelas políticas públicas de cultura, merecendo esclarecimento a diferença entre as duas últimas: sociedade como o conjunto de todos os indivíduos; comunidade como grupo que possui laços de proximidade e integração, incluindo relações de afeto.

A Constituição ao integrar os três atores referidos no processo de promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro ensejou uma revolução democratizante no âmbito da cultura, historicamente admitido como espaço reservado, na melhor das hipóteses, à aristocracia pensante e intelectual do país.

Mas o sentido da integração em apreço extrapola em muito a simples técnica da decisão pelo critério da maioria, que é o ícone mais simples e acessível do regime democrático. Estado/Sociedade/Comunidade(s) dividem não apenas poderes, mas responsabilidades, pelos rumos da cultura; fiscalizam-se mutuamente para que as práticas culturais cumpram os objetivos de aprimorar a alma, as práticas e os valores humanos, questionem as coisas postas e proponham novos rumos, quando necessário.

As políticas públicas de cultura, seguindo o raciocínio, não podem ser apenas resultado de planos de governos, mesmo que investidos pelo voto popular, mas devem se submeter a uma dupla legitimidade de caráter constante: a dos anseios gerais da sociedade e das comunidades especificamente afetadas.
Não se trata apenas de atender as aspirações declaradas ou colhidas em função de técnicas de marketing, mas as que possibilitam ao cidadão e às coletividades situarem-se historicamente, vivendo o aqui e o agora e tendo, ao mesmo tempo, referenciais do passado e responsabilidades para com o futuro.

Muitas autoridades responsáveis pela gestão cultural não têm este entendimento, e disto resulta que a partir de seus gabinetes lançam planos, projetos e idéias de ações, preocupados, muitas vezes, apenas em deixar uma marca pessoal. Ofertam, não raro, aquilo de que já se dispõe, sob novo rótulo.
Buscam aceitação por meio de práticas feéricas, repleta de luzes artificiais, repetidoras da política do pão e circo, e até do circo sem pão, muito apropriada a manter as coisas do jeito que sempre estiveram. Tudo isso geralmente à custa da omissão com as obrigações outras, inclusive as cotidianas e indispensáveis, como a de conservação de estruturas e acervos culturais historicamente consolidados.
Quem assim procede, comete a inconstitucionalidade de deixar de ouvir e integrar os destinatários e co-responsáveis pelas ações culturais.

E mais que desrespeitar um formalismo jurídico, abre mão de suas cumplicidades em favor da luta pela concretização dos planos traçados, ficando frequentemente assemelhado àquele que faz pregações no deserto.As políticas culturais, historicamente praticadas nos moldes das ciências concebidas no século XIX, vêm, portanto, regendo-se pelo critério da exclusão, seja das práticas antecedentes, seja dos demais legitimados sociais.

Os gestores culturais prestariam grande serviço aos seus administrados se observassem a sugestão de Victor Hugo de homenagem às lógicas da pluralidade e do acúmulo, que fazem a regência e a riqueza das expressões culturais.


HUMBERTO CUNHA

Especial para o Caderno 3
O autor é professor de Direito Constitucional e Direitos Culturais nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da Unifor. Advogado da União.

Jornal Diário do Nordeste - 15 de Fevereiro de 2009
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=615278

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Maracatu Estrela Brilhante



Artigo escrito por Ednardo para o Jornal O Povo - Fortaleza - Ceará, publicado em parte condensada em 2005, e agora enviado na íntegra em 2009 pelo autor.





Zeca Zines publica com prazer esta contribuição de Ednardo sobre o Maracatu Cearense.






MARACATU ESTRELA BRILHANTE
Ednardo

Maracatu Estrela Brilhante
Maracatu o teu brilho errante
Gamela da nossa mistura
Tão linda tão mista e tão pura
Maracatu

Garra maracá já guerreiro
Batuque ferro e ganzá
A flexa cravada no céu brasileiro
Infinitamente Cantar
Cantar
Cantar
... ... ...

Uma vez, quando menino, ví o Maracatu Estrela Brilhante, e nunca mais esquecí sua energia e força, faiscante ele veio pela rua. Naquele tempo todos os Maracatús se reunião no Parque da Liberdade, também chamado Parque da Criança, no centro de Fortaleza, e percorriam a chamada "Maior Rua do Mundo", que começa na Beira da Praia e em linha reta passa pela Cidade e se transforma numa estrada e adentra o interior do Estado de todos nós.

E eu do alto dos cinco anos de idade me perguntei - Que coisa linda é esta?
E saí pela rua, entre braços e pernas dos adultos.
Eu, no estado de pessoa acompanhando o ritmo e música do Maracatu.

A visão pra mim, coisa mágica, os lampiões que abrem o desfile e que preservam o espaço sutil e perfeitamente delimitado do bloco, a ala dos indios, com suas vestimentas de penas coloridas seus Cantos Indígenas e rítmos marcados pelos maracás e estalar das cordas bramindo contra os arcos, perfeitamente entrosados com os tambores, lançando as setas imaginárias em direção ao infinito que na minha mente de criança continua a existir.

Logo a seguir os pagés, os morubixáuas, reis de nações, as índias suas companheiras fiéis, rainhas, príncipes e princesas, e tudo isto verdadeiro, e cantando, em harmonia com o canto dos negros que na ala seguinte entoam os Cantos Afros, o espaço se abre com a presença do Pagé junto ao Rei e Rainha, a corte Real, envolta em luzes de candelabros, feitos de rústicos lampiões envoltos em fino pano vermelho, e grandes abanos coloridos que sinalizam sutilmente o espaço limítrofe entre os participantes do bloco e os assistentes.

Em seguida, os Tambores, que a gente já escutava em suas repercussões, ressoando nas paredes das casas de Fortaleza à mais de trezentos metros de distância, junto as marcações do contra tempo que no Maracatú do Ceará é especial pela presença do Ferro, ( um triângulo especialmente construído para esta finalidade do repinique no grau mais amplo das tonalidades metálicas), depois mais perto o xik-xik dos Ganzás, os Tambores- Grandes e médios, as caixas, fazendo o Rá-Tá-Tá-Tá - da puxada, e logo em seguida o BOMM do Baque do Maracatu.

E depois compreendí que aquela força tinha mais de 100 Anos de Solidão, Macondo é perto de Fortaleza, do Maracatú, quem já percorreu a excelente viagem, vai entender o que estou descrevendo.

E eu estava lá, e quem é criança, como eu, continua sabendo que todas as explicações não bastam, os Reis e Rainhas são perenes em suas sutis fragilidades, e em seus Arquétipos, são bastantes fortes. A explicação de que eram a representação da Côrte Européia, com os Índios e os Negros, cada qual colocados "em seus devidos lugares", parece equívoco, diante de tantas evidências.

A alma do Maracatu, tem talvez o tempo da civilização brasileira, é fruto da vivência, da sabedoria, do sofrimento, e também da alegria e beleza da saga humana, em nossa terra.

O Maracatu, está colocado como um dos prismas de visão, em uma parte de minhas músicas sobre este tema, ritmo e identidade cultural, traduzidas para o universo artístico, em um espaço todo especial.

Especial porque o Maracatú do Ceará é único nesta forma no Brasil, suas raízes mais longínquas vêm diretamente dos arquétipos e dos arcanos culturais de nossa miscigenação.

Das terras então (naquelas eras) recém "descobertas" do Brasil, a junção com as Nações Indígenas Brasileiras, principalmente do Nordeste: Tabajaras, Tremembés, Carirís, Pitiguaras, entre muitas outras; Da África, as Nações : Nagô, Bantu, Ijexá, Congo, e também muitas outras; Dos Europeus em suas diversas Nações, castas e extratificações sócio-culturais, Portugueses, Franceses, Espanhóis, Holandeses.

O Conceito Ritual da Civilização dos habitantes desta Terra, (chamados de índios, equívoco do cálculo dos navegadores, quando ainda se pensava que o Brasil era a Índia ou uma Ilha), incluia o respeito pelo encontro entre as raças dos povos que aquí aportavam.

Ao se encontrar com a consciência do povo africano, sequestrado como escravos pelos europeus, (e também vendidos aos brancos pelos próprios africanos em guerras tribais), fez aflorar a consciência deste povo refém, em suas purezas e custumes, o Reino daquí, ainda não tinha a informação do que havia acontecido nos Reinos vizinhos das Civilizações Maia e Azteca, entre outras.

MARACATU AZ DE ESPADA

Existem registros nos escritos originais de Hans Staden e Jean de Lery - NAVIGATIO IN BRASILIAM AMERICÆ, e VIAGEM À TERRA DO BRASIL que relata o tráfico de selvagens brasileiros em navios franceses, para serem vendidos como escravos aos Mouros brancos da Barbaria, como também faziam os navios portugueses com o aval do Rei de Portugal para este tipo de tráfico.

Também existem registros da contra partida onde as Nações ao Sul do Brasil praticavam a antropofagia- aquí incluída num contexto de guerra e vigança, com seus rituais de comer a carne do inimigo para ganhar suas forças:

- "Ndê t'mberaba shermiurama mae amboe" (A tí sucedam todas as desgraças, minha comida)
- "De kange yuca cypota kurine" (Eu quero ainda hoje cortar a tua cabeça)
- "Che y anama pepike ki chaicu" (Para vingar a morte dos meus amigos, estou aquí)
- "Yande sso che mocken sera quora ossorime rire (Tua carne será hoje, antes que o sol entre, o meu assado).

Com gritos de guerra bradavam os índios, e se prisioneiros fossem feitos, continuavam o ritual, onde "aquele que deve matar", pega a clava e diz - "Aqui estou, quero te matar, porque os teus também mataram a muitos dos meus amigos, devorando-os" e segundo o relato o outro, responde: - "Depois de morto, tenho ainda muitos amigos que me vingarão"

Tudo isso regado pela bebida feita pelas virgens da tribo ao mastigarem a raiz da maniva (mandioca), após fervida, que em contato com a saliva humana gera a fermentação - depositada em um pote e após o tempo de curagem e diluição com água é bebida por todos os que vão comer a carne do inimigo.

Nota - Esta versão parece ser a visão européia da época sobre os conflitos gerais ocasionados pelo estado guerreiro então estabelecido entre as partes, levando em conta os ânimos daqueles momentos, lembra também um pouco a sintomática justificativa para o extermínio dos contrários, a inquisição queimava bruxas, as cruzadas matavam os infiéis, as virgens, seus antecedentes e ascendentes, talvez tivessem o mesmo destino comum, de serem em seguida, também devorados pela vingança futura.

CAUIM
Ednardo

Rainha Preta do Maracatu
Nesse teu rosto de falso negrume
Morre de gozo da renda do sol
Na renda feita pelos bilros d'água
Desse véu de noiva Bica do Ipú

E eu um índio pronto para as flexas
Dos arcos tesos de uma caçada incerta
Monto no sopro do Aracatí
Tonto de espanto de amor e cauim
Sou nau sem rumo
Em teu ardor imerso
... ... ...

Depois vem a síndrome do conquistador se sentir exilado de sua terra natal, após território ocupado, ter que continuar residindo e resistindo em território alheio, o que também significa estabelecer vínculos integral com tudo, natureza, nativos, escravos, povo, Reis e Rainhas depostos, e com seus próprios propósitos de conquista.

Nesta nova ordem estabelecida em uma terra, que inicialmente seria o paraíso terrestre e que a partir de então mostra o seu lado selvagem, o Enigma se estabelece e esta Terra, somente será de todos, após a decifração: A Junção das Raças e as distribuição das riquezas entre as mesmas, conforme seus trabalhos.

13 DE MAIO - Libertação de Que?

Ou então coberta pelo manto de uma realeza equivocada que aquí se instalava, junto aos povos viajantes, em suas naves de madeira, (a tecnologia de ponta daquela época), e no caldeirão explosivo da carga humana dos escravos, (indios, negros e brancos), alijados de suas próprias realezas, esta Terra seria o eterno campo de batalhas inglórias, sem vencedor ou vencido, ou guardaria em suas entranhas o absurdo de se viver em meio a fartura e não se ter comida, viver em terras de dimensões continentais e não se ter espaço e liberdade para ver os filhos crescerem, e onde as árvores não dariam sombras nem frutos, os caminhos utilizados para levar nada à muitos e tudo à poucos, e as mãos que construíssem as habitações e fortificações do invasor, não tivessem como abrir a porta de sua própria morada, pois estariam ocupadas sempre em produzir riquezas e garimpar o ouro, para o pagamento da conta da empreitada da conquista de novas terras, irônica e cruel realidade dos escravos de então.

Como se a força dos elementos da natureza tivessem mudado das mãos do Superior e a Luz não mais banhasse as Almas.

É do conhecimento de todos, por maior que seja a maquiagem histórica, o "desconhecimento" que até os tempos de agora nos empurram como fatos oficiais nos bancos das escolas, que Nações Inteiras com seus "Reis, Rainhas e Povos", ao longo deste tempo, foram manietados e subjugados pelas forças das armas, da grana, do poderio da tecnologia. Dizem os sábios que: quem não aprende com o passado, muitas vezes se vê colocado em situações idênticas no presente ou futuro.

Assim, todos vieram, e chegaram com seus custumes, religiões, leis, e as extratificações de sociedade, dividindo os povos, às custas das "pacificações" que na verdade eram genocídios. Não houve o convite para uma participação harmônica, cada qual, com suas sabedorias e civilizações da inauguração de uma nova casa, a América (do Norte e/ou do Sul).

O extermínio de indios e negros não é somente filme de faroeste e de tarzan, onde o epicentro da ação, está em épocas passadas no cenário do oeste norte americano, ou das savanas africanas, isto sem esquecer as indias orientais, ocidentais e acidentais, onde todos os mocinhos, matavam os bandidos e terminavam o orgásmico e sangrento festim aos beijos, no final feliz do "the end" do filme.

A selva geral se deu e se dá no Brasil também, a época é variável , 1500 à 1900, e devemos todos nós querermos uma outra realidade diferente para depois dos anos 2000.

O Que têm esta História a ver com o Maracatu? - O MARACATU é tudo isto ai junto.

A hospitalidade nordestina reconhecida como um dos pontos fortes dos traços de nossos custumes, marcadamente vem de nossos indios, que receberam os brancos europeus e os negros africanos, que por sua vez também devem ter recebido a civilização branca com a altivez natural de habitantes legítimos destas regiões, e também em suas consciências cósmicas, dirigidas para o destino atual do Brasil que ao entrar neste terceiro milênio, se mostra como o verdadeiro "melting point" da miscigenação racial de todo o planeta.

Hoje em dia, já temos, nossos japoneses, nossos chineses, nossos alemães, nossos ingleses, nossos franceses, nossos holandeses, nossos americanos do norte e do sul, nossos espanhois, nossos portugueses, nossos mouros, nossos muçulmanos, nossos tuaregs, nossos indús, nossos africanos, nossos bárbaros e nossos doces, etc., etc., enfim somos os representantes mais ricos em termos desta mistura humana, por favor não esqueçam os indios, pois realizamos o projeto talvez mais amplo da humanidade.

A saudação usual da Hospitalidade entre as nações de nossos indios e as outras nações que chegavam após vários períodos e fases, tinham inicialmente o espanto e respeitosa aproximação, depois escravizados, o da revolta e guerra, e ao histórico domínio pela superioridade das armas, riquezas exploradas, movimentação e tecnologia, e etc., E inicia-se a fusão destas raças , e o nascimento do ser brasileiro.

-"Ere iobê" (Tu vieste?) dizia o Cacique Morubixáua da Nação visitada.
-"Pa-aiotu" (Vim, sim) dizia o o representante da Nação visitante.
-"Auge-be" (Bem dito) respondia o "Rei e Rainha e o Povo" da nação visitada. E os visitantes ficavam à vontade, com as palavras de recepção emitidas que valia como: bem vindo, ou diz bem o que tu fala, e nós te recebemos.

Não deve passar desapercebido, nem aos olhos mais desatentos, o simbologismo do Maracatu em suas cargas conceituais: Artes plásticas, roupas e adereços, pinturas; Expressões Corporais, diversos modos de danças, posturas representativas; Ritmos, Músicas, Vocabulários. E como espetáculo transcendental de nossa cultura viva.

A realidade do Teatro, somente para citar alguns, o Teatro Kabuki (japonês) pela utilização das máscaras que define expressões estáticas e posturas miméticas, o Grego quando um homem representa personagem mulher, a Rainha, (tradição do Maracatú do Ceará) e ainda incorporando as raízes negras, brancas e indias, e o Teatro Romano, por sua tradição de encenação pública e itinerante, sujeitas a modificações conforme a platéia, como nas Arenas.

Se todos estes pontos de identificação do Maracatu, fosse fruto de um produto artístico racionalizado e realizado grupalmente, com o tempo definido de uma companhia teatral, ou seus sucessores, já seria um grande fato. Mas ao constatarmos que esta função existe ao longo de décadas e mais décadas, (os estudiosos podem relatar sua durabilidade, especificidade e importância), e além de tudo, levada em frente por grupos populares, em expontânea e transcendental informações de arquétipos estrutural de nossa cultura , é óbvio e ululante, "que eles, somos nós".

Com suas alas de indios, negros e brancos, a abertura de leques de informações, a representação das nações com seus Reis e Rainhas, que significativamente podem ser representados simbólicamente por elementos de qualquer raça, ao pintarem seus rostos com a tinta preta , a fisionomia é anulado teatralmente pela máscara, e com ela, qualquer traço de identificação racial, permanecendo no entanto, qual o negativo de uma fotografia, a imagem íntegra de um ser humano no seu mais alto positivo. Por isto o sentido do Re-Ligari que o mesmo possui.

O Ritmo é Hipnótico, centraliza o estado natural das pessoas, a Música é composta por unidades Mântricas, de Auto-Concentração Interior.

A palavra é utilizada neste Ritmo e nesta Música com a finalidade mística e religiosa de fazer o Bem, e seus emitentes, devem estar aptos a concretizá-las em ações de equilíbrio com outras entidades e forças.

MARACATU AZ DE OURO

Curiosamente, o Maracatu desfila também durante o Carnaval, e seu ritmo, longe de ter os apelos frenéticos das bandas de frevos, escolas de samba, e agora dos carros de axé músic, também consegue arrastar multidões aos seus desfiles, similar fenômeno também existe na Bahia, com os afoxés, só que aquí no Ceará, os maracatus estão sendo incompreensívelmente colocados em escaninhos folclóricos, e sendo distanciados da festa popular por todas as formas e meios, o que é um gritante equívoco, como resultado eles se tornam progressivamente longínquos da identificação das novas gerações cearenses, que perdem este precioso referencial próprio, para em seu lugar, adotarem o referencial cultural de outras regiões.

Isto é no mínimo uma política cultural suicida, em relação à autonomia cultural, artística e de custumes popular que está sendo praticada contra o sincretismo de uma manifestação espontânea e abrangente, sem o aval do povo cearense.
A consciência, do conteúdo desta resistência, é fundamental para que possamos conhecermos a nós mesmos.

Esta realidade é tão estranha e contudente, que talvez existissem parâmetros de comparações, se pudermos imaginar alguém pensando em acabar, ou colocar em gavetas classificatórias menores, distanciando de festas populares, manifestações como: os Afoxés na Bahia, as Escolas de Samba no Rio de Janeiro, os Blocos de Frevo em Pernambuco, os Bumba Boi do Maranhão, por exemplo.

O raciocínio de que o Maracatu, possui um andamento muito diferente do que alguns elegem por conta própria para o padrão do carnaval cearense, é no mínimo, ingênuo, desinformado, ou interessado em limpar espaços em nossa própria terra, para que depois a monocultura sistemática e controlada seja realizada.

Queremos ver e saber de tudo, não somos xenófobos, gostamos da diversificação e democracia sonora, visual, da informação das várias maneiras de ser brasileiro, mas também estamos atentos as tentativas de nos tornarem apenas consumidores do modelo dos outros, e a preservação de todos os prismas de nossa identidade é vital para que possamos ser e estar.

SER E ESTAR
Ednardo

O imenso brilho do sol que explodiu nesse céu
Fotografou você
Sua sombra no ar a bailar, virou um louco maracatú
Sua dança a dançar, babel de som da cidade
Gente é preciso se dar valor, para ser e estar
Nesse rio real da existência
Além da dor, mêdo, violência
Existe o prazer de querer e ser querido
Revelar o precioso ser, habitante em nós
Vestindo o azul do espaço, e rasgando a mordaça da voz
Sonhar plural, acreditar estar com todos
Na solitária sina, solidariedade ao povo
De qualquer lugar, múltipla fantasia
Tudo é, foi, e será, escrito está
Solar expressso solar, tão cheio de gente a viver
Desabrochando aquí, no chão do planeta
Uma aura de um ôvo de luz, daonde nasce outra terra
Não fazendo de sí alimento, dos senhores da guerra
Olhar pro Aquarius no céu, vê se vê
Vê se vem, já não dá pra esperar

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Foto Para Pensar


Foto ganhadora do primeiro lugar na categoria "Notícias Gerais" do World Press Photo of the Year. De autoria do brasileiro Luiz Vasconcelos, do jornal "A Crítica", a imagem mostra uma mulher tentando impedir o despejo de seu povoado em Manaus, no Brasil, dia 10 de março de 2008

Luiz Vasconcelos/A Crítica/Zuma Press/EFE

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O Tamanho da Estrada de Santana

- Sobre o ‘Pessoal do Ceará’

Ruy Vasconcelos


Naquele tempo e por uma série de razões a canção popular era um veículo opulento. O mercado ainda não estava tão estruturado. E havia um limite, um constrangimento à criação, que, paradoxalmente, a desafiava: a falta de liberdade de expressão. Mas havia também o fato mais ou menos cru de que os consumidores de disco eram quase que exclusivamente de classe-média. E, claro, de uma classe-média que pela primeira vez na história do país se beneficiava de uma educação universitária massificada.
A década de 70, no rescaldo dos inquietos 60, viu surgir pólos de criação onde houve universidade forte fora do eixo Rio-Sampa: na Bahia, em Minas, no Recife e em Brasília. Mas Fortaleza também esteva presente e de forma marcante.

O que se convencionou chamar de Pessoal do Ceará não é uma ficção. Mas um grupo que de forma mais ou menos organizada soube repartir tarefas. Entre intérpretes, compositores, letristas, instrumentistas, produtores, vimos surgir nomes como os de Raimundo Fagner, Belchior, Ednardo, Petrúcio Maia, Fausto Nilo, Brandão, Téti, Rodger Rogério, Ricardo Bezerra, Manassés de Sousa, Cirino, Augusto Pontes, Marta Lopes e tantos outros.

Em particular, salta aos olhos a inata qualidade literária do texto de certas canções. Brandão, Belchior e Fausto Nilo contribuíram bastante neste sentido. As letras de Brandão são como poemas autônomos que por acaso foram musicados, tal sua excelência. Belchior foi, então, um atento ouvinte de Dylan e de outras grandezas do universo pop. E Fausto Nilo, uma mente arejada o suficiente para pensar a palavra em música como uma amplidão de espaço que vaza para fora do som.
A diferença aqui é que todos os três não pensavam apenas em música. Pensavam mais longe, em algo que sendo uno é diverso, e responde pelo nome de arte. Como a vida.

Por seu turno, há um aperreio e um improviso muito grande em certas gravações se contrapostas à assepsia sonora de hoje. Quando se escuta coisas como “Estrada de Santana” dá para perceber o quanto há de bricolagem nessas sessões de estúdio.

Algo que está sendo resgatado, no momento presente, pela pesquisa esquizofrênica e ousada de Dustan Gallas: soar artesanal dentro de um estúdio digital. No caso dessas sessões de estúdio nos 70 eram quase gravações ao vivo. Ou pouco mais que isto. Havia uma comovente simplicidade e falta de atavios, que faz lembrar velhas (e doces) senhas: “da rodoviária para o estúdio”, “arrumar o cabelo e seguir”, “meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem”.

Sofisticada artesanalidade. Tempos de constrangimento geram uma arte exigente assim. Há algo de muita emergência em canções como "Estrada de Santana". Algo que nos compele a percorrê-la de novo a cada vez que a escutamos. O lirismo misterioso, tenso e brilhante desse texto vale por dias bonitos de chuva: "Quem ouviu passarinho cantar,/ao meio dia, no silêncio de um lugar,/sozinho e sozinho esperou/que a noite trouxesse a esperança do sonho/ e a companhia do luar".

O que seduz nessa canção não é apenas sua vivaz referência à paisagem de um interior qualquer do Ceará. Mas o modo como ela nos instala lá: os passarinhos, o riacho temporário, a mata, o pequeno cemitério rural, etc. E, no entanto, escutando-a com melhores fones-de-ouvido, percebemos que essa vivacidade vem menos por conta da descrição da paisagem e mais pelo fato de ela ser evocada por um exilado: "Mas sou eu que não posso voltar//Não, não, não corro a Estrada Velha de Santana [...]". Essa impotência de estar nos lugares da eleição pesa nas carnes do cearense como uma maldição de proporções devastadoras, bíblica mesmo.


Em "Estrada de Santana" o migrante exilado mal dimensiona, de fato, o pedaço de vida que lhe foi roubada - embora sinta na carne que o foi: "Sem jamais entender o que alguém perdeu./ E perdeu, e ficou assim." Este "assim" ganha uma função adjetiva, como na fala popular. Algo que se aproxima de "desalento", "desesperança". Segue para além de uma simples e casual troca de estado de humor. Implica algo mais fundo: uma mudança na personalidade por razões de saudade de casa.

Ora, nenhum outro povo do Brasil, como o cearense, é mais especialista nisso: saudade de casa. E porque vivemos no mundo. E, claro, nem sempre por escolha. Assim "Estrada de Santana" assoma como mais uma das grandes canções de exílio que povoam o cancioneiro cearense. Um ilustre conjunto que vai de Catulo da Paixão Cearense (que era filho de cearense migrado para o Maranhão) ["ah, que saudades do luar da minha terra!"] e passa pelo ciclo de letras composto por Humberto Teixeira para músicas de Luiz Gonzaga e que incluem clássicos como "Asa Branca".

No início de "Tudo Outra Vez", Belchior nos diz: "Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa". É claro que estas palavras possuíam, à época, uma ressonância e uma urgência política mais vasta, mas não menos radicam nessa tradição do exílio. A mesma cantada por Ednardo ("Eu venho das dunas brancas/ Pr'onde eu queria voltar"). É apenas notório que, por razões óbvias, os duros anos de ditadura tenham acerado ainda mais essa condição de exilados.

Mas também em “O Astro Vagabundo” há inquietações de sobra para traduzir esse período. Qualquer coisa de muito sombrio e belo habita nessa canção. Nela o exílio para uma espécie de apocalipse ao mesmo tempo iminente e cotidiano – ou seja, feito daquelas simultaneidades possíveis só em sonhos – é a clássica imagem dos trovadores para o órgão sexual feminino: o pequeno jardim cercado, o Éden.
Dormir nesse jardim é o lenitivo. Esquecer por um lapso o pesadelo da realidade. O arranjo de cordas (que é de Wagner Tiso), os teclados, a amargura, o dilaceramento da voz de Fagner, exaltando-se na segunda parte, tornam a canção de uma sinceridade irresistível.


A lista é longa e a letra é breve. Se pode falar desse período como daquela “noite posta sobre a mesa” de “Asa Partida” – onde, aliás, há este verso que praticamente resume tudo: “eu não queria a vida desse jeito”. Ou seja, essa saudável inquietação diante de uma realidade extremamente defeituosa.
O Pessoal do Ceará pôs essa noite sobre a mesa com uma impressiva nitidez. Há o magistral (e majestoso) final de “Pavão Mysteriozo” ("Eles são muitos/ Mas não sabem voar"), carregado de utopia como nuvens densas num sertão de muitos meses de estio.
Quer dizer, "eles" - todos que não os migrantes - são muitos, também no sentido de poderosos. Mas não tem a dimensão do vôo, do sonho, alimentados por essa torturante saudade de casa que ensina mais do que qualquer escola, porque constitui em si uma odisséia.

O tema também reincide na delicada geografização de “Pequeno Mapa do Tempo”, de Belchior, com seus requintes de analogia entre a sonoridade das palavras e a concreção dos lugares citados. E em que tudo segue em suave crescendo até se chegar à "estrela do norte/Paixão, morte é certeza", que repõe Fortaleza no seu devido lugar - como uma espécie de Jerusalém. Ou, ainda antes disso, claro, essas velas do Mucuripe saindo para o risco e para uma intemporalidade maior do que a morte.

Quase como último espasmo coletivo, houve o disco-coletânea Massafeira. O disco surgiu como o registro e o subproduto mais notável de um evento mais amplo, envolvendo artes plásticas e performances que ocuparam o Theatro José de Alencar e marcaram época em Fortaleza.

Um empenho pessoal de Ednardo, com co-produção de Augusto Pontes, que sempre foi uma sorte de coringa ou eminência parda da galera. Massafeira, o álbum duplo, marcado pela diversidade, é uma espécie de limiar entre gerações. Hoje, um notável cult. Em “Frio da Serra”, a interpretação de Marta Lopes é preciosa. Vívida. Cheia de frescor: "Lá embaixo, no espaço/ as casas estão com frio". Há algo mais cearense do que o modo como ela pronuncia palavras como “poste” [pósti], com esse "s" tendendo a 'sh'; ou, sobretudo, “dinheiro” [dim-êro], onde o "h" é quase supresso, na bela letra de Brandão? [Coisas assim são de grande vigor cultural, embora passem longe do estereótipo ou do sotaque da telenovela].

Outros destaques vão para a barroca balada “Atalaia” ("paisagem de agreste clarim") interpretada à Fagner por Ferreirinha [Francisco Casaverde]; o bandolim do multinstrumentista Zé Maia em faixas como “Vento Rei”; o espontâneo talento de Wagner (depois Tazo) Costa - à época pouco mais que um menino - em "Isopor" ("Eu vou sair desse jogo malvado,/ Você só quer me ganhar"); e a copla medieval “Aurora”, cantada por Ednardo e Belchior, onde ocorrem versos como “sonhos de aurora eu sonhava/ no colo de minha irmã”, ou ainda: “abre as janelas, manhã”.

Aqui, a manhã entra em vocativo. Conversa-se com ela. E essa prosa parece remeter para uma daquelas casas sertanejas: brancas alpendradas, de pé-direito baixo, perto de um açude. Casas de onde nunca deveríamos ter saído, fosse este mundo mais justo. Ou nossa república menos imperfeita.

A importância de Massafeira, tanto enquanto evento como em seu registro fonográfico, ainda resta por ser dimensionada. A impressão, para quem a testemunhou, era a de uma tempestade pop, que até então só víamos no cinema, desabando ao vivo e em cores, durante quatro dias, em Fortaleza. Para descrever o evento, usou-se no encarte do álbum duplo a expressão "carnaval fora de época". Até entende-se o que se quer dizer com isso. Porém Massafeira foi muito além do que esta expressão tenta traduzir. Afinal, carnaval fora de época - hoje em dia - está mais para algo como a micareta, o Fortal ou alguma estupidez do gênero.

O que seduzia na imensa festividade, no exótico, na diversidade, naquele sobejo de contracultura - o fetiche das guitarras e amps, a tal "velha roupa colorida", os cabelos invariavelmente longos, desgrenhados - era a atmosfera em si.
E isso tudo numa acanhada capital do subúrbio, em plena linha do Equador. Na periferia da periferia do mundo. Aquelas guitarras rascantes ecoando pelas galerias e entornos de seu pequeno e charmoso teatro. Era algo de uma notável sugerência de novidade e vida. E, melhor, de novidade na diversidade. E num tempo em que, por mordaças várias, estávamos apenas começando a saborear a delícia de expressar-nos sem censuras. Inclusive as das patrulhas ideológicas de esquerda.

Para um povo, como o cearense, tão pouco afeito a manifestações assim - mais gregárias, em que o herói são todos e nenhum - o evento resta quase como um marco, nota dissonante. Mas de uma dissonância alegre, espontânea e promissora. O que Massafeira legou foi uma enorme fé na capacidade de elocução coletiva a partir de uma Fortaleza, convenhamos, bem mais provinciana que hoje. Não por acaso, chegou a despertar ciúmes em outros estados. Daí que não poucas matérias ao se referirem ao evento, ou a seu registro em disco, insinuarem que a gravadora CBS - a hoje Sony Music, uma das mais poderosas multinacionais da indústria fonográfica - ser acrônimo de Cearense Bem Sucedido, em referência ao poder de barganha do grupo (em especial de Fagner) junto à direção da empresa.

Em tempo, há dois discos que decretam o ponto final desse impulso: o próprio Massafeira, no plano coletivo; e o álbum Beleza (1979), de Fagner, na esfera mais individual. O álbum é de uma formosura dilacerante. Poucas composições. Arranjos opulentos, sob a supervisão de João Donato. Um time de músicos estelar.
Não há uma única faixa onde não reincida o título do disco. Inclusive a própria faixa título, com letra de Brandão que é verdadeiro achado ("e quando se vê o arame/ que amarra toda gente/ pendendo das estacas/ sob um sol indiferente"). A plangência da voz de Fagner chega a seu paroxismo. Guarda mesmo algo de indizível, limítrofe. Em todas as trilhas, tudo é asa partida, dor. Por exemplo, em uma canção (por sinal subestimada) como "Quer Dizer".

Pode-se sentir a cinco quadras de distância a potência elegíaca desse conjunto de canções tristes. A suíte de um trabalho de luto. Luto individual, mas que também se pode entender como canto de cisne ou estender como mortalha dessa fase heróica do Pessoal do Ceará.

Não é nehum segredo de estado, aliás, que os três nomes mais rutilantes do grupo não são propriamente os melhore amigos na face da terra. Mas é ao menos um consolo relembrar que, em tempos idos, eles já se envolveram em colaborações mais estreitas.
Desde então, Belchior tem trabalhado anos a fio na estrada, em turnês - sobretudo pelo interior de São Paulo e pelo Sul. Ednardo exerceu trabalhos diversos a partir do Rio, sua base. E Fagner, após um começo fulgurante - a exemplo dos dois outros - em que teve discos tão experimentais como Orós, com colaboração de Hermeto Pascoal - cortejou o mercado de forma mais agressiva e popularesca.

Mas o tempo passou. Será que hoje ainda seria possível produzir, por acaso, um disco conceitual com a contundente amargura de Beleza? Ou um exeperimental com as mirabolâncias de Orós?
Difícil responder. Os tempos são outros. A própria noção de disco é já tão outra.
A importância das grandes gravadoras foi alvejada em cheio pelas novas mídias digitais. O que era um sonho distante, remoto, só possível no Rio ou em São Paulo lá pelos já distantes anos 70, é algo que está ao alcance de qualquer cantor de banheiro: gravar um disco.
Levas de cd's produzidos e gravados em Fortaleza são despejados no mercado mês após mês. Mas qual de fato à importância da primeira geração que, de modo coletivo, dotou o Ceará de uma voz e de um sotaque bastante distintos?

O tamanho dessa Estrada de Santana é uma boa medida para se sair atrás de uma resposta. Daquelas capazes de preencher a moral de uma história. O momento foi ímpar. E eles eram jovens.
Não houve solução de continuidade. Ou sequer uma geração subseqüente que soubesse abiscoitar essas finezas. Dialogar com elas. Como quase tudo neste país, esse momento não se desdobrou para fora de si. Cristalizou-se.
E claro, a vida não estava ganha. E era preciso ganhá-la. Nesse processo, se foi um pessoal. Alguns devotaram-se a um sucesso um tanto tacanho. Outros desapareceram dentro daquela noite.
E a mesa em que ela estava posta, por um mau agouro, talvez se tenha convertido apenas num balcão para negócios sortidos e bem menos espontaneidade e arte.

Quantos de fato souberam do tamanho dessa estrada?


Nota - artigo originalmente publicado no jornal O Povo, em 2003, em versão abreviada. Dica: é possível baixar na íntegra o álbum duplo Massafeira (1980) pela internet.

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Blog de Ruy Vasconcelos - AFETIVAGEM
http://afetivagem.blogspot.com/2008/12/o-pessoal-do-cear-um-encmio.html

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Ruy Vasconcelos é Jornalista, Escritor e Tradutor.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Poesia em Prosa

Calíope - A Musa
São Paulo / SP





Ele fez uma poesia em prosa no meu corpo.
Desenhou as linhas em minha pele com o calor de seus beijos.
E com a ponta da língua escreveu cada palavra com os fluidos do seu corpo,
E eles transbordaram em mim, quentes e macios.
E eu me afoguei naquele rio de luxúria.
E fui resgatada por aquele abraço sensual.
Levou-me ao delírio


Depois se deitou ao meu lado com todas aquelas palavras doces,
O afago no lugar certo
Me deixou descansar em seu colo.
Me deixou sonhar em seus braços
Me deixou sorrir naquele gozo intenso.
Éramos um mistério um para o outro.
Sabíamos breves linhas das crônicas da vida de um e do outro
Mas ali, o paraíso era ali
Meu paraíso de sensações confortáveis,


O incenso de rosa branca, o lençol de seda, o espumante.
E tivemos uma vida que durou uma noite.
Não houve vida mais pulsante que a vida vivida nos braços dele...
Emoções intensas em curto prazo.
Meu desejo mais ardente.


E no dia seguinte eu era apenas a “ página virada, descartada do seu Folhetim”.
Então ele acordou
E engolimos apressadamente o nosso café e o amor,
Eu procurava o seu olhar, e ele, a chave do carro.
Enfim, a despedida:- “A gente se fala linda, nos encontramos em algum bar da vida”.

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Texto publicado com Autorização da Autora
Calíope - A Musa

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Objetores de Consciência

Vídeo dos objetores de consciência que se recusaram a servir o exército de ocupação de Israel. Jovens secundaristas de 18 e 19 anos que discordam da política de ocupação da Palestina. Foram presos. Vídeo remete a uma carta de apoio a ser enviada ao ministro da defesa de Israel.

Post do orkut por João Bani

domingo, 11 de janeiro de 2009

IMAGINE - PAZ PARA TODOS

Estava a imaginar como abriria os posts neste ano de 2009.

Diante de tantas coisas, algumas boas, mas muitas outras não, do que acontece no mundo, cheguei a conclusão do que é necessário, com estas canções, uma de Jonh Lennon - Imagine e outra de Louis Armstrong - What a Wonderful World

É necessário abrir portas e janelas da percepção para ver o que acontece ao nosso redor.



quarta-feira, 31 de dezembro de 2008


Já é 2009 na Austrália.
Feliz Ano Novo para todos.

Para Todos?

Será que podemos comemorar sem pensar um pouco e muito em todos cidadãos do mundo, aqueles que por exemplo estão em países em guerra?

A Terra é Mãe, e acolhe a todos, tanto em sua superfície quanto em sua morada final.

Mas essa coisa de algumas nações pelo poder e força bruta tentarem dominar outras por questões de terrritórios, poder econômico, militar, interêsses politicos e religiosos, parece até que não conhecem o anunciado de uma Lei Básica da Física, de Isaac Newton - Cada Ação Corresponde uma Reação Igual e em Sentido Contrário.

Elke Maravilha, Russa, de Minas Gerais com um pé em Leningrado (atual São Petersburgo) e outro pé no Brasil, foi criada brasileira entre descendentes de africanos, na fazenda Cubango, em Itabira, Minas Gerais, a mesma cidade onde nasceu Carlos Drummond de Andrade.

Elke Grunupp, teve seu pai deportado para Sibéria durante 6 anos por regime totalitário, recebeu seu papai ao chegar em casa com uma martelada na cabeça, após sua fuga dos "Arquipélagos Gulag", e indagando quem é essa pessoa?

Descendente de azerbaijanos, mongóis e vikings, a mãe, Lieselotte Von Sodern, era alemã, nobre que se apaixonou por um plebeu. Seu pai, George Grunupp, insurgiu-se contra o stalinismo e a União Soviética natal, em 1939.

A guerra de ideologias causa distorções absurdas e confusão mental nas gerações posteriores, uma das melhores frases de Elke Maravilha entre as muitas registradas, está numa entrevista concedida ao Jornalista Pedro Alexandre Sanches:

"Meu pai escolheu o Brasil porque para ele era o país das infinitas possibilidades. E é. Chegamos na baía da Guanabara e fomos despejados num campozinho de concentração na Ilha das Flores. Hoje é um quartel", lembra. "Aqui judeu se dá com árabe e vão juntos para a macumba."

Este post encerrando o ano de 2008 (já é 2009 na Austrália), vai para a infinita lucidez de Elke A Maravilha, sua beleza e coragem. E também pensando que podemos fazer uma reflexão, mesmo que por alguns minutos sobre tudo que está acontecendo no mundo, aqui e agora e em todos os países.



Feliz 2009 para Todos.



terça-feira, 30 de dezembro de 2008

F E L I Z 2 0 0 9


Amigos e Amigas que neste ano prestigiaram com suas presenças o Zeca Zines.

Desejo pra vocês tudo de bom mesmo.

Valeu!

Esta foto sobre o Espírito Natalino e Ano Novo, "pesquei" do blog do amigo Piauinauta, achei bastante significativa para nossas reflexões.

Abraços à todos, e até 2009.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Rompendo as Entranhas do Chão

Entrevista com Ednardo realizada por Magno Córdova – Mestrado UnB - Música do Ceará e do Piauí - 2006

Rompendo as entranhas do chão:
Cidade e Identidade de Migrantes do Ceará e do Piauí
na MPB dos Anos 70

Magno Cirqueira Córdova


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Nota:
Zeca Zines, leu a excelente defesa de tese de Magno Córdova, para a UnB (Universidade de Brasília) em sua Pós-Graduação em História Cultural - Agosto de 2006.

O autor está transformando a tese em livro abrangente, de importância fundamental, onde foca nomes e trabalhos poéticos e musicais desta geração, que conquistou o Brasil e Exterior, dentro de contextos e nuances universais, brasileiras e regionais, com especial destaque a Música Popular Brasileira.

É um estudo minucioso e rico de informações, onde as obras artísticas de vários artistas migrantes do Ceará e Piauí se inserem de forma plena na MPB entre eles: Ednardo, Fagner, Belchior, Fausto Nilo, Augusto Pontes, Climério, Clodo, Clésio, e muitos outros nomes de igual importância.

Zeca Zines aplaude com entusiasmo a iniciativa de Magno Córdova e faz votos que este livro esteja disponível no mais breve tempo, a todos que se interessam pelo assunto.

A seguir a entrevista de Ednardo concedida a Magno Córdova.

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MC - Na época em que alguns dos parceiros do Ceará residiram em Brasília, no início da década de 70, vocês continuaram mantendo contatos? A concepção do disco coletivo Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem ocorreu quando todos (você, Rodger e Teti, principalmente) já se encontravam em São Paulo, ou a idéia de um trabalho conjunto, mais orgânico, já havia sido cogitada em Fortaleza?

ED - Quando residíamos em Fortaleza, o tempo de todos era ocupado pelo aspecto de fazer músicas, e letras, teatro, artes plásticas, etc., tudo que estivesse no contexto artístico.
Também tínhamos nossos estudos em faculdades e trabalhos. Naquela época, até talvez, por causa do curto tempo disponível de cada um, não existia na maior parte dos participantes, a preocupação organizacional, projetos, ou cogitar trabalhos futuros.

A vida era, como é, urgente!
Claro que alguns tinham o enfoque de pensar o todo, entre eles, Augusto Pontes, sem dúvidas, tinha esta visão futura, mas o pessoal, embora se reunisse sempre que possível, tinha tanta premência de se expressar em tão exíguo espaço de tempo.
De certa forma sabíamos que, uma parte significativa das pessoas iria desaguar em outros espaços, nossa cidade de Fortaleza, naquele momento era pequena, ou não comportava tanta criatividade, certo é que existia uma inadequação às propostas de todos naquele momento. Não sei se houve projeto arquitetado neste sentido, as necessidades de todos foram se desenvolvendo de forma grupal e individuais sem concepções à priori.

O fato é que no êxodo existem direções em três partes, alguns foram para Brasília, outros para o Rio de Janeiro e outros para São Paulo. E sempre que possível mantínhamos contactos, claro que sem as facilidades de internet e comunicações de hoje em dia. Mas existia esta energia que rolava sempre que era possível uma reunião. Às vezes maravilhosas, outras deixavam a desejar, era um tempo de exceção, ditadura, competição de espaços.

MC - Você se lembra - e pode narrar - a circunstância em que se deu o contato inicial com Climério?

ED - A ponte inicial com o Climério, foi feita pelo parceiro Augusto Pontes em 72, após um show que realizei na UnB – Auditório Dois Candangos, para os estudantes de Brasília, estavam presentes na platéia Augusto Pontes, Yeda Estergilda, Climério e Clodo e uma quantidade muito grande de estudantes e professores, estava tudo lotado, cadeiras, e no chão, tudo apinhado de gente.

Para entrar no palco, já que todos acessos estavam bloqueados pelo excesso de pessoas, tive que subir por uma escada que arranjaram no momento e através de uma janela lateral que ficava a uns dois metros de altura, dar um salto diretamente para o palco, pra delírio da platéia que comentou que foi uma das entradas em cena das mais sensacionais e inusitadas.

No dia seguinte os irmãos Ferreira, convidaram para ir na casa de Dona Alice, matriarca da família. Lembro até hoje seu sorriso luminoso, com voz suave, pautada e amiga. Foi ótimo, tocamos violões, cantamos, tomamos cervejas e principalmente se fez amizade plena que resulta em várias parcerias artísticas.

MC - Como foi que surgiu a idéia e como se deu a sua atuação junto aos irmãos Ferreira no primeiro disco da carreira do trio, o São Piauí?

ED - Na casa de Dona Alice, escutei algumas músicas do Climério, Clodo e Clésio e gostei da sonoridade e letras daquelas músicas. Disse pra eles que quando tivesse oportunidade eu gravaria um disco com eles. Anos depois Climério foi residir em São José dos Campos / São Paulo, em pós-graduação universitária, no INPE, nossos contatos foram mais freqüentes, ele foi diversas vezes à minha casa em São Paulo, e convidava para também ir a São José dos Campos. No Bar do Pedro entre músicas, violões e cervejas, a idéia de nossa parceria foi sendo construída.

Tinha a Frô do Avaré, Flying Banana (Carlão, Bê e Passoca), os shows que fiz em São José. Foi quando em 76 a música Pavão Mysteriozo, foi sucesso no Brasil e exterior e falei pro Climério – “Sabe aquela lance que conversamos em Brasília, acho que agora eu posso sugerir para gravadora, o disco de vocês”.

O Cli tomou um susto e disse que o que eles estavam pensando era eu gravar músicas deles, e eu disse que minha idéia era outra: Eles próprios gravarem suas músicas.
Foi uma noite de justificações do Climério tentando convencer que eles não eram artistas, não tinham voz pra isto, cada um já realizava outro trabalho diferente desta praia, e eu tentando convencer que eles podiam sim, gravar este disco com suas vozes.

Terminamos a noite, eu, o Cli, o Flying Banana, a Frô do Avaré (Evelise), sentados na calçada frente ao Banhado que tem uma vista privilegiada pro Vale de São José dos Campos, era inverno e estava amanhecendo, e no brumado, lá ao longe se via um trem envolto em neblinas, o céu se confundia com a terra e formava no difuso um espaço mágico e eu falei - Olha ali Cli, está vendo aquele trem flutuando nas nuvens, parece um cinema impossível, aquela máquina e seus vagões estão voando aos nossos olhos, vocês podem sonhar um pouco mais, e ver que é possível você e seus irmãos gravarem este disco?

Semanas depois, nos reunimos em São Paulo em quatro dias e noites, gravando no “Tenda Som” – (pequeno estúdio em minha casa) umas vinte e tantas músicas em k7 que levei à direção artística da RCA, (atual BMG), e o Cli falando rapaz isso é somente uns “Pensames”, eles não vão querer.

Foi difícil convencer a direção artística da gravadora, levei-os ao programa da TV Bandeirantes – Mambembe, produzido por Walter Silva, onde também o Pessoal do Ceará se apresentava semanalmente junto a outros participantes, e o Walter os colocou pra cantar, chamei um assistente de direção artística da gravadora para dar uma olhada, pois no dia seguinte os irmãos Ferreira estavam voltando pra suas casas, e na prorrogação, do segundo tempo, minutos finais, recebi o telefonema da gravadora autorizando a gravação do disco São Piauí, fui avisá-los na Rodoviária de São Paulo, que ficava ao lado da Estação da Luz.

Os ensaios e arranjos foram realizados em minha casa durante duas ou três semanas, junto aos músicos de base. O disco entre gravações, mixagens, artes gráficas de capas, em pouco mais que dois meses. E o resto é história, deste disco inaugural da maior importância – São Piauí.

MC - A música "Folia ou Pressa" tem algum significado histórico especial para você, ou a sua "(re) descoberta" se deu mais recentemente?

ED - O disco “Única Pessoa” é formatado com objetivo onde minha ação principal é de intérprete.
Há muito tempo queria realizar disco com esta característica.
Escolhemos temas que se coadunavam e foram feitas seleções de mais de 80 músicas até chegarmos naquele perfil, com obras de autores de várias localizações abrangentes.

Tem autores do Ceará, Piauí, Maranhão, Pará, Rio de Janeiro, Goiânia, Paraíba, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, e além Brasil tem música de autora de Cuba.

Só interpreto músicas de outros quando gosto, e somente quando me dá prazer em cantá-las, então vejo todas estas músicas de forma especial, mas entre umas e outras, não existe um significado de diferença, todas fazem parte do universo, que não necessariamente, representa histórico pessoal complementar, é mais por gostar de cantar, mesmo.

MC - No disco Cauim você gravou "Terezina - 40 Graus". (Eu não conheço o filme Cauim, onde talvez haja algum esclarecimento sobre a pergunta que se segue). Como foi - e é - sua relação com a cidade de Teresina, em particular, e com o território do estado do Piauí, de uma maneira geral?

ED - Tenho proximidade artística e existencial com o Piauí, grandes amigos e amigas, alguns parceiros como Climério, Brandão, realizei produções artísticas como por exemplo na Massafeira que resultou em disco duplo, onde estão Chico Pio, Ana Fonteles, Zezé Fonteles, Jabuti, todos eles do Piauí, produzi o primeiro disco dos irmãos Ferreira, Climério, Clodo e Clésio, é uma lista representativa, que inclue também entre os amigos, Cinéas Santos, Wellington Dias, Jorge Mello, e tantos outros.

Aliás, o Ceará e Piauí, têm historicamente muitos itens em comum e complementar. A Serra da Ibiapaba é uma espécie de “fronteira” permeável. Existe história que antes, o Estado do Piauí, não tinha em seu território parte que dava pro mar e os governos destes Estados trocaram territórios, uma parte do pé de serra da Ibiapaba que era do Piauí, por uma parte do litoral que era do Ceará – que hoje representa aquela faixa de Parnaíba.

Além disto tem o grande fluxo de seus habitantes que se dá em duas vias de mãos, corações e mentes, tanto do Ceará para o Piauí, quando do Piauí para o Ceará. Tanto que tranqüilamente existe este fluxo há muito tempo, onde todos se sentem em sua própria casa.

MC - Você pode me falar a respeito da inclusão de "Rasguei o teu retrato" e "Na asa do vento" ao seu repertório discográfico?

ED - Desde menino, escuto músicas de compositores, autores e intérpretes que antecederam nossa geração, contemporâneos e novos, tanto na área popular quanto clássica, é natural que esta memória afetiva esteja presente eivando vários momentos.

Em meus discos além de ter aberto espaços para inúmeras parcerias, vez por outra reservo alguns espaços para interpretar obras de outros autores, além destas que você cita tais como, Cândido das Neves e João do Vale, Luiz Vieira, Belchior, Fausto Nilo, Petrúcio Maia, Humberto Teixeira, Lauro Maia, Augusto Pontes, Graco, Stélio Valle, entre muitos outros, o que se concretiza mais claramente no disco “Única Pessoa” que gravei em 2000, disco que realizei como intérprete de músicas de Chico Buarque, Milton Nascimento, Fernando Brant, Totonho Villeroy, Bebeto Alves, Nilson Chaves, Jamil Damous, Clésio Ferreira, Augusto Pontes, Maria Tereza Lara, Javier di Mar-y-Abá, Régis Soares, Chico Pio, Neudo Alencar, Rogério Soares, Lauro Maia, Humberto Teixeira, Antonio Cícero, Orlando Moraes, com uma única música minha em parceria com Chico César.

MC - A canção "Serenata pra Brazilha" foi composta à época do lançamento do Imã? É possível você falar sobre esta composição e sobre o lugar ocupado pela cidade de Brasília em sua trajetória?

ED - Serenata pra Brazilha foi realizada durante a gravação do disco Imã, em 79 junto ao disco duplo Massafeira, os três discos foram lançados em 80. Esta música inclusive foi gravada somente com voz e violão, uma espécie de serenata pra uma cidade que talvez não comportasse serenatas, a não ser nas periferias das cidades satélites, mas achei interessante contrapor o fato quase que impossível de se fazer uma serenata no plano piloto e suas asas, mas afeito às preocupações políticas partidárias e funcionalismo público, mas não só isto, como uma espécie de toque de união geral à alma do povo brasileiro, a música foi gravada no disco logo após a composição feita.

Gosto muito de Brasília, a idéia estética de cidade construída, de forma moderna e pensada, no Brasil.
Tem outras cidades construídas desta forma, mas a idéia de conjunto arquitetônico de Brasília é fenomenal nas concepções de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.

Mas não é só isto que me liga a Brasília, meu pai, Professor Oscar Costa Sousa, falava muito de Dom Bosco, de suas profecias, seus métodos de ensino, lia ensinamentos com constância, tanto que fundou em Fortaleza, como professor e diretor, o Ginásio Dom Bosco, no qual exerceu magistério por mais de 50 anos.
Então veio a vontade de conhecer a concretização realizada por Juscelino Kubitscheck, que igualmente lia Dom Bosco.
Juntou-se ao fato que alguns parceiros e companheiros de artes também foram morar nesta capital, e ao chegar pela primeira vez, fiquei extasiado por sua energia, é lindo o cerrado, o planalto central tem de verdade coisas muito especiais, além de ser a concentração do status quo político da nação.

Pois Brasília não é apenas a sede do poder político brasileiro.
Nesta música coloco Brasília com Z, a última letra das incógnitas, como se aprende na álgebra.
Z no alfabeto grego também significa vida.
Tenho muitos amigos em Brasília. Também é um desaguar de habitantes de todas as partes do planeta, é uma “ilha” e um “espaço-porto”, onde aí encontrei também os descendentes dos primeiros desbravadores, chamados “candangos” que ajudaram construir a cidade, e nesta “cosmo-visão” a música já estava pronta e veio num repente.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

A Fidelidade Estética de Ednardo


Entrevista concedida por Ednardo a Revista Bula
Goiânia

17/11/2008 Por
http://www.revistabula.com/materia/a-fidelidade-estetica-de-ednardo/884


“Em meu estoque de propósitos não está disponível vender o que não ofereço, nem existe vaga para compradores de meus sonhos. Acho que caminho à minha própria luz e não está em minhas preocupações obter massificação ao custo da integridade artística ou do que possa aviltar aquilo em que acredito”.


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Quem não se lembra de “Pavão Misteryozo”, “Artigo 26”, “Terral” e “Enquanto Engoma a Calça”? Bastariam essas quatro canções — sucesso de público e crítica — para inscrever o cearense Ednardo entre os grandes músicos da MPB. Ao lado de Belchior, Amelinha e Fagner, ele foi um dos integrantes do Pessoal do Ceará, grupo que, a exemplo dos Novos Baianos de Moraes Moreira & Cia., reabriu o caminho do Nordeste na música popular brasileira, depois do sucesso do tropicalismo de Caetano e Gil.

Natural de Fortaleza, onde nasceu em 1945, José Ednardo Soares Costa Sousa estudou piano e violão na juventude e graduou-se em química pela Universidade Federal do Ceará. Em 1972, gravou seu primeiro disco (um compacto duplo), com a cantora Eliana Pittman. No ano seguinte, juntamente com Rodger e Teti, gravou o disco Pessoal do Ceará, que iria tornar nacionalmente conhecido o movimento que se iniciara no final da década de 60. Radicando-se em São Paulo, com outros integrantes do Pessoal do Ceará, apresentou-se em programas da TV Cultura.

Mas o sucesso veio em 1976, com a música “Pavão Mysteriozo”, trilha sonora da novela Saramandaia, da Rede Globo. A partir daí, Ednardo firmou-se como um dos ícones da nova música nordestina, que tomou conta das rádios do país na primeira metade da década de 80, até que o rock nacional e, depois, a música sertaneja e o axé, viessem a expulsá-la da mídia. Ednardo, como outros grandes músicos brasileiros, deixou de tocar no rádio. Mas sua música indelével manteve o público fiel. Não só no Brasil, mas também na Europa, na Ásia, nas Américas.

Com 32 anos de carreira em disco e mais de 250 músicas gravadas, Ednardo manteve-se fiel a uma proposta estética que prima pela qualidade, fundindo o regional e o urbano, a sofisticação e a singeleza. Em 2002, ele juntou-se a Belchior e Amelinha para reviver o Pessoal do Ceará, num disco que leva esse nome. O CD traz os clássicos do grupo e duas canções inéditas, entre elas a bela “Mote, Tom e Radar”, do próprio Ednardo. Antes, em 2000, ele lançou o disco Única Pessoa, em que mostra o seu lado de intérprete.

A revista eletrônica Bula, por intermédio de seus editores, conversaram com Ednardo. O resultado da conversa, via correio eletrônico, revela não apenas o grande compositor e intérprete da MPB, mas o artista consciente das mazelas da indústria cultural. Nesta entrevista, Ednardo explica qual o verdadeiro significado do Pessoal do Ceará, critica o jabá que impera nas emissoras de rádio e não poupa o conterrâneo Fagner. E mostra que sua arte continua mais viva do que nunca, encantando o país à revelia da mídia.

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Carlos Willian — Onde você nasceu?

Ednardo - Em Fortaleza, em uma casa à Rua Senador Pompeu. Os cearenses brincam, dizendo que é a rua mais extensa do mundo: inicia na beira da praia, atravessa em linha reta toda a cidade, transforma-se em estrada, vai pelo interior do Ceará, em direção a todo o Brasil.

Carlos Willian — Há artista injustiçado?

Ednardo - Não; sim; talvez. Quem saberá o que é isto que trafega entre a bruta força dos meios, onde os artistas navegam com sutilezas? Grandes gravadoras e a mass mídia, com raras e honrosas exceções, têm tratado o assunto música brasileira, com distanciamento, desconhecimento e outros interesses prejudiciais às nossas diversidades e riqueza musical, rítmica, poética e estética.
Não é difícil perceber. Escutem rádios, vejam tevês, saibam como se escolhem prioridades de lançamentos de discos, patrocínios, projetos artísticos, quais espaços e horários de programações.
Àquilo a que grande parte da massa tem acesso está muito aquém da importância e popularidade das artes e músicas realizadas pelos artistas brasileiros. É só viajar por esse país para se perceber isso. A sensibilidade aflora, o povo brasileiro é sofisticado em sua cultura popular e exige ser tratado com respeito, e requer ter acesso ao reflexo de seu verdadeiro espelho, em todas as cores e estéticas.
O país é gigantesco, seu povo maior ainda. Sabemos que a grande indústria cultural, aquela que comanda espaço e tempo na mídia, tem objetivos diferentes da indústria cultural nacional que enfrenta sérias dificuldades para o seu crescimento. A consciência quanto à atenção aos produtos audiovisuais, livros, teatro, cinema etc., valorizando seu povo, costumes e identidade, que são de importâncias fundamentais para se construir uma nação, fica em segundo plano.

O brasileiro, nos tempos atuais, tem poucas opções e passa a consumir o que for filtrado e decidido por terceiros e seus representantes, empurrado entre campanhas publicitárias, marketing e canhões da mídia. A afirmação não é individualista, nem xenófoba. A manipulação instituída pelo jabá pode ser chamada de crime irresponsável e indistinto, e estão fazendo isto com nosso povo, e seus artistas — antenas da raça — como fala Ezra Pound. Adjetivar no sentido singular é tentar desviar o foco da verdadeira questão.

Carlos Willian — Zeca Baleiro afirmou que você o influenciou. E quanto a você, quais foram as suas influências?

Ednardo - Li matérias de vários artistas com essa afirmativa. Penso que são influências naturais e iniciais de admiração, respeito e aprendizado para depois decolar livre. Claro que também tive mestres, aprendendo bastante com todos.
Ao começar a fazer música, estudava piano clássico e popular, entre os cinco e quatorze anos. Freqüentava auditórios de programas de rádios que apresentavam cantores e orquestras de fama nacional ao vivo, ao mesmo tempo escutava o que as rádios de Fortaleza, Rio de Janeiro e vários países ofereciam aos ouvintes.
Tínhamos um rádio valvulado com ondas médias, curtas e tropicais, onde todas as correntes musicais coexistiam fartamente difundidas e uma discoteca ampla que eu tratava com carinho desde os discos de cera dos meus pais aos long-plays que passei a adquirir com freqüência.
Tanto em Fortaleza quanto em viagens aos litorais e interior do Ceará mais distantes, ia aos espaços públicos de carnavais e feiras livres, para ver e escutar maracatus, violeiros repentistas e sanfoneiros, bumba-boi, congados, frevos, forrós, cocos, emboladas e sambas, descobrindo músicas, ritmos afro-brasileiros e indígenas e suas vertentes culturais.
Entre os 15 e 25 anos, meu instrumento mais constante foi o violão, tanto na vertente dos movimentos musicais que vinham de fora, rock, blues e jazz, quanto na vertente brasileira, baião, bossa nova, samba, choro, além da vertente latina, bolero, rumba. As músicas de protesto contra guerras e ditaduras, chegaram ao nosso conhecimento, e percebemos o que acontecia na América Latina com regimes políticos autoritários e totalitários que alguns tentaram combater pelas armas e outros pelas artes.

Também acontecia o pessoal da Bahia, São Paulo, Rio, Minas, Recife, Paraíba, Piauí, e de muitas outras regiões do país. Fui abençoado por todas estas vertentes que eivaram meu espírito e criatividade. É uma lista enorme de influências, acho que dá para ter uma idéia. Agradeço aos sábios mestres terem me proporcionado este universo. Os melhores ensinamentos que o conjunto das influências proporcionaram foi, sem dúvida, ter mente, sensibilidade e consciência, voz e conteúdo para cantar e ouvidos abertos e atentos, com plenitude de emoções e compreensão do que somos.

Carlos Willian — Alguns críticos dizem que você ficou à sombra de Fagner, mesmo sendo um artista mais completo do que ele. Em sua opinião, por que você não alcançou a mesma projeção?

Ednardo - Do ponto de vista artístico, a abordagem é inusitada e desconheço comentário neste sentido. Quem possui visão abalizada e isenta e conhece nossos trabalhos artísticos, não se refere desse modo ao que tenho realizado nestes 32 anos de música. Somos diferentes e distantes o suficiente, o que impossibilita essas colocações. O fato de sermos conterrâneos, de uma mesma geração criativa, não induz comparações de nossas obras, de nossos projetos artísticos e existenciais. Não se trata de valoração pessoal, é uma constatação, sem equívoco.

Em meu estoque de propósitos não está disponível vender o que não ofereço, nem existe vaga para compradores de meus sonhos. Acho que caminho à minha própria luz e não está em minhas preocupações obter massificação ao custo da integridade artística ou do que possa aviltar aquilo em que acredito. Está implícito e explícito em minha obra e posição existencial. Porque querer essa tal de “mesma projeção” onde alguns para alcançá-la vendem a alma?

Antônio Carlos dos Santos — Por que não se escuta mais Ednardo nas rádios?

Ednardo - Não se escuta mais, com tanta freqüência, grande e impressionante quantidade de artistas brasileiros. É esclarecedor se programadores destes meios e seus departamentos comerciais respondessem à pergunta de forma clara e verdadeira.
São eles que são comandados na “escolha” e oferecem ao público o que escutamos e vemos e deixam grande parte do que representa a música brasileira fora da lista do que é difundido.
Foi o que mostrou criteriosa pesquisa realizada pelo jornalista Sérgio Rubens Torres e publicada no jornal Hora do Povo, de São Paulo. Recomendo a leitura desta matéria, que pode ser encontrada na Internet www.horadopovo.com.br/2004/julho/16-07-04/pag8a.htm

O Jabá! Prática famigerada das gravadoras que estabeleceu a censura econômica junto com a conivência e interesses de alguns meios de comunicação e massificação. Junto ao pagamento, enviam a lista de poucos artistas e tendências musicais de seus casts aos controladores do mass media. As trinta moedas da traição à música brasileira têm forma sutil, sem rastros visíveis dos “serviços prestados” por corrompidos aos corruptores.
Outras terríveis formas de convencimento são as demissões sumárias daqueles que ousam divulgar o que não está na lista ou quando expressam suas opiniões. E isto não é só na área da música.

Talvez alguns executivos de gravadoras atualmente se arrependam de ter criado o monstro que anualmente custa aos seus departamentos, 95 milhões de reais e tende a crescer, pois a fome dos que atendem ao controle é insaciável.

Deixo bem claro, que seria injusto generalizar, pois alguns meios de comunicação, cada vez mais raros, demonstram em planilhas do Ecad que, em várias cidades e emissoras, continuam sendo difundidos, para grande número de ouvintes, muitos artistas brasileiros sem que seja necessário pagar para tocar. São emissoras que dignamente entendem o que significa concessões públicas, além de propósitos comerciais, e sabem que música é música e comercial é comercial e que sem cultura própria tudo fica nas mãos de outros, incluindo a opção de escolha individual ou coletiva.

Antônio Carlos dos Santos - Você é um tipo raro de artista que, mesmo estando fora da mídia, tem um público cativo. Por quê?

Ednardo - Tipos raros de artistas existem em vários segmentos da música brasileira. Mídia é o conjunto de meios de comunicações, veículos, recursos, técnicas, suporte, tecnologias de gravação e registro de informações, jornal, livro, rádio, televisão, cinema, audiovisuais, discos, DVD, vídeo, internet, show, divulgação, etc. Quanto ao público que prestigia meus shows e discos, é bem mais amplo.

Tenho, atualmente, mais de 350 obras e gravações registradas em discos originais e compilações, trilhas de cinema e teatro, especiais de televisão. Isso resulta, em média de registros, mais de 12 músicas por ano ao longo de 32 anos. Realizo shows pelo Brasil que geram matérias em jornais, rádios, tevês, em espaços significativos. Os produtores de shows constatam a receptividade da platéia em eventos de médio e grande portes.
Então, não estou tão fora da mídia assim. Na mídia limpa, sem forçar a barra, estou presente. Nenhum artista resistiria tanto tempo sem a mesma. Essa constatação é compartilhada por muitos e em grande escala nestas viagens pelo Brasil.

Acho que não cabe a mim, explicar, esse fato, o que sei é que, desde os primeiros discos, é visível a aceitação popular. Penso que não me distanciei do depositário da cultura popular do qual recebo e ao qual devolvo. Assim demonstram sucessos de várias músicas.
Reservo espaço onde outras pessoas interagem com seus próprios sonhos e realidades, formam imagens exclusivas em novas combinações das histórias do cotidiano, reportagem do que penso que merece ser musicado, pontes entre minha percepção e personas que habitam o coletivo existencial de cada um de nós.
Algumas são aceitas de imediato pelo povo, outras passam pelo tempo necessário à percepção geral.
Especialistas musicais e culturais atestam que existe alquimia sonora e de palavras que, juntamente com a minha posição existencial, artística, formam conjunturas de credibilidade em diferentes abordagens válidas e atuais em várias faixas etárias e segmentos sociais. Estou no meu lugar e a realidade também pertence a todos.

Antônio Carlos dos Santos — Como é o seu contato com o Pessoal do Ceará? Ficou mágoa de algum deles?

Ednardo - Sempre que nos encontramos existem momentos gratificantes. Conversamos sobre arte, vida, cultura, lances normais do cotidiano. Alguns projetos se concretizam, outros são adiados. Nesse ano, realizamos shows, para um grande público, no Festival de Inverno de Petrópolis e Friburgo, no Rio de Janeiro — Ednardo, Amelinha e Belchior, que gerou nosso disco lançado na Warner em 2002. O show de Fortaleza, em 2001 (Ednardo, Belchior e Fagner), não gerou disco, embora com um público de 100 mil pessoas. Outro encontro foi o show gravado pela TV Globo, no Som Brasil (Ednardo, Amelinha, Belchior), com público idêntico, mas também sem disco.

Mas tem a Massafeira 1979 com mais de trezentos artistas de diversas áreas e gerações criativas que resultou no disco duplo Massafeira (CBS, Sony, 1980), que é um capítulo especial do Pessoal do Ceará.
E ainda o Balanço da Massa (Fortaleza, 1995), junto com artistas da nova geração.

É preciso entender que Pessoal do Ceará é bem maior que o grupo que a mídia costumou citar. Quem tem o primeiro disco Pessoal do Ceará (Ednardo, Teti, Rodger Rogério), lançado pela Continental em 1972, um vinil capa dupla, sabe da diversidade e valor de muitos nomes citados na capa interna e também da diversa significação artística nos segmentos de música, poesia, literatura, artes plásticas, teatro e outras formas de expressão.
Como em todo grupo, principalmente de pessoas ligadas ao fazer artístico e cultural de qualquer lugar, existem naturais competições de egos e defesas de ponto de vista estéticos devido à diversidade de propostas, que são resolvidas com inteligência, amizade, civilidade e bom humor. Dificilmente perduram mágoas ou qualquer coisa desse tipo, a não ser se houver falta de ética, mas aí já é outra coisa.

Antônio Carlos dos Santos — Quais são as novas revelações da música brasileira?

Ednardo - A cada geração que se renova, conhecemos valorosos autores e intérpretes. É vital que cada geração artística reconheça a importância daqueles que a antecedem e seja generosa com aqueles que chegam na continuidade evolutiva da música brasileira.
Também temos a realidade absurda que embota e apaga o que é significante dos registros e memórias brasileiras.
Às vezes, para falar do presente, é necessário dar uma volta no passado para termos saudades do futuro.
Desenvolvemos projetos neste sentido: Nosso primeiro disco já tinha esta característica de entender individualidades criativas dentro de processos grupais. Também lançamos o primeiro disco dos piauienses Climério, Clodo e Clésio, livro de poesias do Brandão, primeiras músicas dos cearenses Petrúcio Maia, Fausto Nilo, Augusto Pontes, Fagner, Ricardo Bezerra, os movimentos da Massafeira Livre e Balanço da Massa.

Especialmente a Massafeira uma das mais ousadas e seminais iniciativas de mostrar ao país o que acontecia em termos de arte contemporânea espontânea e enraizada no final dos 70 para o início dos 80. Grande feira cultural feita por nós artistas, sem nenhuma injunção exterior, juntou música, artes plásticas, literatura, teatro, dança, cinema, artesanato e culinária sem nenhuma espécie de filtragens, com artistas de várias regiões, mais de 300, reunidos no Theatro José de Alencar, em Fortaleza, em março de 1979.
Depois, outros tantos na gravação do disco duplo no Rio de Janeiro. E, em seguida, para lançar o disco duplo no Theatro José de Alencar, em outubro de 1980. Mas muito pouco se falou no Brasil da importância da Massafeira.

Desde os meus primeiros discos coabitam várias gerações. A constante vem aos mais recentes discos, como Única Pessoa, que tem autores de várias regiões: Rio de Janeiro, Ceará, Piauí, Goiás, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pará, Maranhão, Paraíba.

Acompanho a cena musical brasileira sempre que possível. Percebo que de todos lugares despontam pessoas que se somam aos que já têm estrada. A quantidade e qualidade de discos nas áreas alternativas e independentes, e alguns poucos de forma bem mais rara nas majors, tem seu devido reconhecimento. Muitos dos bons, estão lutando por seus espaços e colhendo frutos, mesmo que o terreno atual esteja difícil de plantar.

Mas é delicado nominar artista ou grupo, no estágio inicial do que chamam “os novos”. Citar alguns, é possível esquecer outros também importantes, e não quero para mim a função de ficar indicando ou descobrindo novos talentos de maneira paternalista, parecendo que não tenho assunto próprio para colocar em pauta.
Mas continuo a ter olhos e ouvidos atentos para o que acontece com a mesma capacidade de abraçar e dizer: sejam bem-vindos.

Carlos Willian — Quem é o maior compositor brasileiro: Chico ou Tom?

Ednardo - Justamente pela compreensão do gigantesco universo da música brasileira, seria adequado fazer uma lista bem maior, lógico que também incluindo estes bem-citados artistas e muitos, muitos outros. Seria indelicado escolher “o maior” entre todos. A música brasileira não é somente aquela feita em determinada região, ou por compositores de correntes musicais ou gerações criativas, ou ao que é visível na atualidade. É muito mais do que isso.

Carlos Willian — A letra da música “Ima” aparece em alguns livros de literatura. Em sua opinião, letra de música é poesia?

Ednardo - Além desta, outras têm sido usadas em livros de literatura, compilações de poesia, crônicas e até em livros didáticos. Partindo do princípio de que poesia pode ser musicada, em contrapartida, muitas letras de música, quando realizadas com critério, também existem como poesia, independentemente da música. É um fato que se observa com freqüência desde os antigos bardos e trovadores até as obras lítero-musicais atuais no Brasil e no exterior.
A música brasileira está plena desses exemplos. Não pretendo enquadrar o que escrevo para minhas músicas nessas categorias de poetas ou letristas. É outra forma de juntar sensações que se completam pela música.

Carlos Willian — A música “Lagoa de Aluá” foi feita para alguém em especial?

Ednardo - A letra desta canção é do parceiro Climério. Fiz a música com outro parceiro, o Vicente Lopes.
Climério foi passar férias em Fortaleza, e nosso parceiro Dominguinhos também estava por lá. Apostamos para ver quem faria mais músicas e letras durante 30 dias. Muitas são desta fornada: “Enquanto Engoma a Calça”, “Lagoa de Aluá”, “Brincando é que se Aprende”, “Flora” e outras ainda inéditas.
Climério é um dos grandes letristas e poetas atuais. Pouco conhecido do público, suas letras fazem parte de vários sucessos na música brasileira. Tive a honra de produzir seu primeiro disco, em que também estão seus irmãos Clodo e Clésio. O disco chama-se São Piauí.
Professor e mestre de comunicação da UNB, Climério tem vários livros de poesias. É um mestre das artes.

Antônio Carlos dos Santos — Qual a sua opinião sobre a ditadura musical da atualidade?

Ednardo - Revisitando o passado não tão distante, durante a ditadura militar, a indústria fonográfica atual foi implantada por empresas multinacionais e obteve regalias bastante significativas, tais como isenção de impostos e outras benesses governamentais.
Com o poder destas corporações, as gravadoras nacionais foram sendo aniquiladas ou compradas.
No período da distensão, veio a farra de distribuição de concessões de emissoras de rádio e TV, como moeda de troca para aprovações de projetos governamentais.
Formaram-se monopólios e oligopólios, entre parlamentares do Congresso, amigos de políticos, fortes grupos econômicos que começaram a disputar o jabá das gravadoras e foi virando uma bola de neve.
A música começou a ser entendida nesta espécie de negociação como comercial ou jingle, os espaços foram leiloados para quem der mais.
A nivelação pela disponibilidade de pagar misturou o trigo e o joio e foi instituída a ditadura econômica, que é resultado destes e outros tipos de realidades extremamente prejudiciais à música brasileira.

Antônio Carlos dos Santos — Você acredita ser viável o caminho percorrido pelo cantor Lobão, de buscar uma alternativa para a onipresença das gravadoras?

Ednardo - Muitos dos mais importantes artistas brasileiros e os que iniciam carreira atualmente, cada vez mais, procuram viabilizar caminhos próprios de forma a não ficar reféns deste absurdo tipo de censura.
Formam seus próprios selos de gravação, editoras e gravadoras individuais ou procuram gravadoras independentes e alternativas para escoar com maior liberdade suas obras.

Esse caminho ainda enfrenta problemas de percurso na distribuição, divulgação e, principalmente, na perspectiva que meios de comunicação de massa sejam realmente democráticos.
Por sua vez, os artistas devem se informar melhor e manter união em busca dos melhores objetivos gerais que atendam as partes.
É essencial que o governo brasileiro, Ministério da Cultura, políticos, estejam juntos aos artistas brasileiros. Aliás, todos estão nesses cargos porque ali foram colocados pelo povo brasileiro. Eles precisam perceber o que está acontecendo e tomar providências. A demora pode ser interpretada como se houvesse outros interesses atrapalhando.
Tramita no Congresso projeto de lei que criminaliza o jabá. Ele é altamente danoso a todos. É, na verdade, dumping e concorrência desleal e ilegal.
Deve ser combatido pelo governo de qualquer país. É contraproducente aos esforços de brasilidade na área de produção artística musical, uma das maiores do mundo em sua capacidade criativa.

Carlos Willian — Como é sua relação com a Internet?

Ednardo - A Internet é evento maravilhoso, uma das grandes descobertas da humanidade. Possibilita movimentação de informações atuais em velocidade e democracia nunca antes imaginadas. Compreendida por muitos como marco da civilização mundial, tão importante como a invenção da roda, do rádio, do avião, dá um salto quântico para a locomoção e comunicação virtual.

Como é utilizada é outra história. Muitos que mergulharam nos livros de George Orwell, de Isaac Asimov e outros autores são partidários da idéia que ficção e realidade têm proximidade preocupante: o controle geral do big brother, o longo porrete da persuasão que tudo vê e administra, as leis da robótica descumpridas.
É comum falar de hackers do bem e do mal. Entre programas, programações de sistemas, cookies, vírus, antivírus, firewall, e-mails, sistemas de telefonia fixas, celulares, satélites etc., nada disso deixa dúvidas que tudo é xeretado, acompanhado e às vezes conduzido à sua revelia por outros.
Filmes e livros de ficção assustadores antecipam o que virá ou constatam o que já é feito, e esta tecnologia de ponta é domínio de poucos. Qualquer pessoa ao entrar na rede já está dando informações e recebendo recados da humanidade, resta saber de quem e para quem. De minha parte sou entusiasta e uso com comedimento.

Carlos Willian — Quais livros fizeram ou estão fazendo sua cabeça?

Ednardo - Tenho acesso a muitos livros desde quando menino. Cultivo o hábito de leitura ao longo de minha adolescência. Escolher especificamente alguns livros-cabeça fica difícil. Livros de cabeceira seria relativamente mais fácil porque estou ao lado de minha estante com muitos nas prateleiras, não tem todos que quero, mas também é impossível ler tudo.
Leio da forma que me apraz, às vezes do início ao fim, incluindo as orelhas. Outras, folheando páginas ao sabor de abrilas aleatoriamente, e outras leio das últimas páginas para as primeiras, e tem aqueles que tenho, e ainda não li, aguardo vontade. É essencial ter bons livros, discos, revistas, publicações; ver bons filmes, sobre diversos assuntos, diversas vertentes.

O material imaterial dos pensamentos humanos registrados nestes formatos, tudo o que for digno do interesse de cada um. Existe muito que se ver, bulir, nesses ícones da sabedoria. O que significa tocá-los, comover-se, sensibilizar a si próprio com os conhecimentos adquiridos, concordar, discordar, mudar de posição, ficar na mesma, se possível.

Carlos Willian — A música pop é descartável?

Ednardo - O que é descartável é a baixa qualidade musical de qualquer onda pré-fabricada e modismos que passam. O que é consistente continua e fica.
Além do mais, pop não necessariamente é sigla de popular, como pensam muitos. Dizem que a expressão pop usada na indústria se origina de “Point of Payment” — é quando o investimento em determinado produto atinge o ponto de equilíbrio entre o que foi gasto na produção, fabricação, difusão e distribuição, e passa gerar lucros por sua venda.

Na música, essa tendência chegou do exterior a reboque de grupos que fazem do fácil consumo e assimilação geralmente pobres de músicas e letras seu principal lema. Utilizam “investimento” de jabá e outros efeitos mirabolantes, coreografias aeróbicas e sensuais pra uma parcela da moçada cheia de hormônios gastarem suas energias e dinheiro.

É diretriz de executivos em alguns países que passaram a inventar, produzir e contratar shows de grupos e subgrupos nesta formatação. Em Pindorama se plantando, tudo cresce e floresce. Quanto mais baixo o nível pop, mais pipocam de todos os lados pop-rock, pop-samba, pop-mpb, pop-sertanejo, pop-forró, pop-axé, pop-romântico, pop-rebelde. Alguns detestam e combatem a vertente que é aceita pelos menos exigentes. Acredito no poder da deglutição, transformação e devolução de outra forma mais criativa e plena que inúmeras vezes a música brasileira demonstra ter.

Antônio Carlos dos Santos — Quais são os caminhos para a música regional brasileira?

Ednardo - Todo tipo de classificação, reduz e apequena. Na música é maneira de compartimentar, segmentar e controlar. Indicar caminhos seria ainda mais complicado. Abstraindo a questão, estão abertos todos caminhos possíveis e imagináveis ao que se inventar. Como música regional, entendo aquilo que é feito por artistas de uma região ou local. Para tornar o regional em amplitude universal, existem fatores, entre os quais a importância e densidade do centro emissor, maestria e qualidade das músicas e letras ou poesias, o carisma de artistas e grupos e, principalmente, a junção desses itens abrangentes nas propostas junto à identificação pública, descobrindo-se os meios que realizem estes objetivos.

Toda e qualquer música tem seu berço em regiões, cidades, bairros, zonas. Nenhuma nasce universal. No Brasil, foi e é assim com o samba, choro, bossa nova, tropicália e tantos outros movimentos e tendências da música feita por brilhantes artistas residentes em qualquer lugar deste imenso país. O que torna mais amplo é a junção dos ingredientes que emulam o povo brasileiro a entender esse liquidificador cultural e estético, a aceitá-lo como sua mais completa tradução naquele instante.

Cada região do Brasil é plural e tem características próprias. Unificadas pela língua, mas com códigos próprios e características culturais longe da hegemonia que aniquilaria nossas ricas diferenças. Ao cultivarmos a pluralidade cultural, musical, religiosa, política, costumes, junto com nossa miscigenação racial, marcamos um ponto gigantesco a nosso favor, mas, em paralelo comparativo, se não cuidarmos bem deste dom natural, seremos fatiados como no modelo das capitanias hereditárias entre feudos, quilombos e arraiais, em pequenas repúblicas das bananas e outras lavouras arcaicas.

Chegando ao Pessoal do Ceará e à nossa geração criativa, inicialmente atuamos nas cenas de nossos locais, estávamos sabendo e sentindo na pele os fatos, tínhamos conhecimento do que era oferecido e também querendo oferecer algo para interagir, participar e atuar de forma ampla na música brasileira. Esta realidade, era a mesma em outras regiões. Saímos daqui, dali, de todo lugar, em meados dos anos 60, e chegamos à caixa de ressonância do Sudeste, levando à cena brasileira nossas músicas.
Nos anos 70, fomos abrindo espaços para outras estéticas de ver e sentir. De várias regiões que chegávamos nos identificaram, junto aos nossos nomes, os locais de origem: “do Ceará, “de Belém, “Mato-grosso, “de Recife, “da Vila, “Baianos, “da Paraíba, “da Mangueira, “do Estácio, “do Piauí, “de Pernambuco, “da Fronteira...
Até hoje não se sabe se forma simpática de entender o Brasil do tamanho que é, ou disfarçada forma de segregação. Era comum referirem-se à nossa música como “invasão nordestina”. Outros a classificaram como regionais.
No entanto, são músicas e letras/poesias que tocam pessoas de todo o país e exterior — sem sombra de dúvida, brasileiras. São centenas de artistas de várias regiões que responderam ao chamado do povo brasileiro. Enfrentamos o exílio em nossa própria terra, lutamos pela volta dos banidos, construímos, com vigor, páginas plenas da música brasileira que o povo não esquece. Até hoje não são justos com os artistas desta geração, os estudos e reconhecimento de nossas obras em termos coletivos e individuais.
Saltam por cima sem cerimônia, como se fosse período insignificante de conteúdo. Como se aquele tempo tão negro da história política brasileira tivesse fechado olhos de estudiosos e críticos à intensidade de luz que emitimos e que servem de faróis até hoje.

Antônio Carlos dos Santos — O que as gravadoras buscam num artista?

Ednardo - É necessário entender diferenças entre diversos tipos de gravadoras existentes no Brasil. As maiores empresas da indústria fonográfica no Brasil, atualmente em número de quatro mega corporações, controlam quase 90 por cento do mercado do disco e execução pública.
Têm matrizes no exterior e suas atividades não se limitam ao meio musical. Como qualquer empresa desse tipo, buscam lucro, prestígio da marca, competição de mercado, remessas de lucros e cuidam de suas ações nas bolsas mundiais.

Empresas de capitais mistos, representadas, interligadas, meios de comunicação, grupos empresariais, religiosos, são dezenas e têm 7 por cento do mercado do disco e execução pública. Matrizes no Brasil e outras não se sabem.

Gravadoras nacionais, selos individuais e artistas independentes são centenas e têm 3 por cento do mercado do disco e execução pública. Com matrizes no Brasil, seus proprietários são geralmente pessoas da área artística, ou interligada diretamente à produção empresarial artística.

O artista é o lado mais sutil da engrenagem, oferece suas obras, interpretações e idéias, sem as quais nenhuma gravadora existiria. Quando é aceito, faz e, ao mesmo tempo, não faz parte das gravadoras, não é empregado nem executivo, seu contrato é temporário por obras gravadas ou anualmente dependendo da vontade dos contratantes e resultados de vendas. A não ser no caso específico do artista ser dono de sua própria gravadora, editora e voz.
Paradoxalmente, somos a parte mais importante e dispensável do sistema. Não é preciso grandes exercícios para se entender esta vulnerabilidade e o que as gravadoras buscam em cada caso.
Neste universo coexistem interesses diferentes. O artista pode ser manipulado em sua vontade, servindo de marionete, ou respeitado como mestre em sua arte.

Carlos Willian — Você fica incomodado com o fato de ter ficado marcado por uma música que foi tema de novela?

Ednardo - Não tenho este preconceito. Por que algum artista ficaria incomodado em ter uma de suas músicas utilizadas em tema de novela?
A utilização foi digna e escolhida por mestres como Walter Avancini e Dias Gomes. Nos dias de hoje, gravadoras e artistas se debateriam ou pagariam para estar presentes naquela obra audiovisual, mas, naquele momento, foi espontâneo e serviu para o grande público ter conhecimento do restante das músicas dos três primeiros discos que eu havia gravado anteriormente.
Em meu acervo autoral constam mais de 600 músicas entre gravadas e inéditas, todas me marcam e minha marca está em todas. Não no sentido de incômodo. Eu mesmo as fiz e seria absurdo não considerar todos os frutos bem-vindos. Além do mais, a música “Pavão Mysteriozo”, realizada e gravada 1973 no disco O Romance do Pavão Mysteriozo é um link entre a literatura de cordel, o ritmo afro-brasileiro do maracatu e a música urbana.

Atualmente, foi utilizada em mais de 30 regravações no Brasil e no exterior, além de ter sido tema principal do excelente folhetim popular Saramandaia, de 1976. Foi também tema indígena em ritual sagrado no Xingu e é considerado hino pelos Blocos de Maracatus do Ceará. Tem versões para outras línguas e foi utilizada pelo pessoal do GLS em desfile para 1 milhão e 100 mil pessoas em São Paulo.

Cantadores e repentistas do Nordeste também a perpetuam no universo popular. O Ballet Stagium, um dos mais respeitados no mundo, a colocou em seu repertório de apresentações. Em qualquer lugar do Brasil todos cantam, em diversas faixas etárias e segmentos sociais, mostrando que a importância da música vai além de suas utilizações.

Carlos Willian — Na sua opinião, Fagner se vendeu?

Ednardo - Além da polarização complexa da pergunta, deixo claro que não costumo opinar sobre direcionamento de cada um à sua arte.
Mas, é conhecido que Fagner criou espécie de persona com a qual conseguiu ser aceito no meio artístico, estribado em seu talento e atritos com gravadoras, artistas de destaque na cena musical brasileira.
Ter diferenças com modus operandi de gravadoras é considerado normal no Brasil, mas desentender-se constantemente com colegas e companheiros artísticos é estranho.
Se a estratégia deu certo durante algum tempo, ao se colocar em pauta na mídia abusando do clichê, o tornou refém da caricatura de si próprio e cansou o público.
Quando ocupou cargo executivo na CBS, ele se auto-instituiu gerente da música de artistas nordestinos ao seu critério pessoal. Tentou fazer aquilo que achava que Caetano Veloso fazia na Polygram. Entre os mesmos foram registrados constantes bate-bocas via imprensa. Foram se juntando desacertos com Elba Ramalho, Robertinho do Recife, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Belchior, Biga Maia, viúva de Petrúcio Maia, Patativa do Assaré, com a família da poetisa Cecília Meirelles, e a família do autor Heckel Tavares e outros. Suas atenções mergulharam em opção declarada para atender solicitações de mercado a qualquer custo.

Diferente dos primeiros discos, vieram posições de indistintas atitudes arrogantes e fome exagerada de autopromoção, utilizando à máquina da gravadora para alcançar metas pessoais, pagando esse tipo de sucesso a um alto custo numa espécie de suicídio lento de sua própria alma artística. De 78 a 80, eu estava contratado pela CBS, sob a direção artística Jairo Pires, (que saiu da gravadora em 79).

Realizei e produzi quatro discos nestes quatro anos e não guardo boas recordações do Fagner neste período. O cargo de direção do selo Epic era transitório, mas, em seu delírio de ego, imaginava que era eterno. Houve manipulação de departamentos e produções a seu favor com falta de ética profissional e artística, demonstrando seu caráter, despreparo e imaturidade. Mas não me deixo envenenar por mágoas e rancores.

O tempo aplaina arestas, cicatriza feridas, mas isto não significa apagar da memória os fatos: meus discos Ednardo (1979), Massafeira (disco duplo coletivo, de 1979) e Imã/Ednardo (1980) foram prejudicados em boicotes absurdos e surreais dentro da gravadora que, a princípio, deveria difundir seus produtos no mercado.
Os discos não eram distribuídos na mídia; o Massafeira foi engavetado por um ano e seis meses, por sugestão dele próprio que, embora participando do projeto artístico, o traiu e a todos os amigos e colegas que participaram coletivamente, alegando à direção da CBS que não era importante e daria prejuízo à gravadora.
Depois, quando o disco saiu numa queima de estoque deliberada em outubro de 1980, foi com um selo colado à capa fixando o preço de um álbum duplo de forma irrisória e desmerecedora, sem antes testá-lo em sua receptividade pública, numa atitude que até hoje não vi em nenhuma outra gravadora.
Foi prensado com verba de divulgação do disco Imã/Ednardo em outubro de 1980, prejudicando os lançamentos destes discos. Chegou ao cúmulo de mandar retirar aparelhagem de sonorização que pertencia à CBS, três horas antes do início de meu show de lançamento do disco Imã no Teatro Tereza Raquel no Rio de Janeiro, em 1980. Não dava mais tempo para contratar outra aparelhagem, mas o produtor Daniel Rodrigues, que trabalhava com Gilberto Gil e estava presente no momento, viu o fato e ficou indignado. Telefonou para o Gil, que disponibilizou, de imediato, a montagem do seu equipamento de sonorização para que o show pudesse acontecer.

Antônio Carlos dos Santos — Quais são seus projetos futuros?

Ednardo - Gravei três discos que tenciono lançar por meu selo. Um ao vivo, outro com trilhas de cinema e o terceiro gravado em estúdio com músicas inéditas. Tem a seqüência de shows que faço pelo Brasil e também a continuação de shows que eu, Amelinha e Belchior inauguramos recentemente no Rio de Janeiro, Petrópolis e Friburgo.
Pretendemos, sempre que houver possibilidades e condições, levá-lo a outras cidades. Inclusive, ele deve ser levado a Goiânia. Há contatos entre a produção local e nossa produção nesse sentido.

Entrevista publicada em março de 2003.
E republicada em Novembro de 2008.
Pela Revista Bula.