domingo, 15 de fevereiro de 2009

Cumplicidade nas Políticas Culturais

Victor Hugo, o escritor francês, traduziu para a sua língua a obra do maior dramaturgo inglês e, de arremate, o homenageou com o mais poético e sensível ensaio humanístico que já tive a oportunidade de ler: Shakespeare. Um gênio reconhecendo o outro.

Assim procedendo, o autor de ´Os Miseráveis´ mostrou-se coerente com um dos pensamentos desenvolvidos no escrito, ao comparar as dinâmicas de avanço das ciências e das artes, segundo o que podia observar na metade final dos anos 1800.

Para ele, a lógica de progresso das ciências estaria na superação; a das artes na acumulação. Queria dizer: um cientista se firma quando desconstitui o que outro elaborou, como aconteceu gritantemente com Copérnico e Ptolomeu, quando aquele, desvelando adequadamente o sistema solar, implodiu a tese de que a Terra era o centro do universo.

No âmbito das artes, este sentimento de destruição do anterior, se existe, não tem cabimento, porque, por exemplo, o florescimento de Shakespeare não reclamou a superação de seu contemporâneo Cervantes, de seu antecedente Sófocles ou de seu póstero Machado de Assis.

O campo da cultura é, por excelência, o ambiente da pluralidade e do acúmulo.
Na atualidade de nosso país, os valores referidos, aliás, foram formalmente adotados pela Constituição da República, não apenas para as artes, mas para todo o campo cultural, ao assegurar ´a todos´, ´aos grupos participantes do processo civilizatório nacional´, ´aos diferentes segmentos étnicos´, o pleno exercício dos direitos culturais que, em considerável dimensão, são de responsabilidade do Estado, o qual deve atuar, no cumprimento de seu papel, em ´colaboração com a comunidade´.

Vê-se que Estado, sociedade e comunidade são responsáveis solidários pelas políticas públicas de cultura, merecendo esclarecimento a diferença entre as duas últimas: sociedade como o conjunto de todos os indivíduos; comunidade como grupo que possui laços de proximidade e integração, incluindo relações de afeto.

A Constituição ao integrar os três atores referidos no processo de promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro ensejou uma revolução democratizante no âmbito da cultura, historicamente admitido como espaço reservado, na melhor das hipóteses, à aristocracia pensante e intelectual do país.

Mas o sentido da integração em apreço extrapola em muito a simples técnica da decisão pelo critério da maioria, que é o ícone mais simples e acessível do regime democrático. Estado/Sociedade/Comunidade(s) dividem não apenas poderes, mas responsabilidades, pelos rumos da cultura; fiscalizam-se mutuamente para que as práticas culturais cumpram os objetivos de aprimorar a alma, as práticas e os valores humanos, questionem as coisas postas e proponham novos rumos, quando necessário.

As políticas públicas de cultura, seguindo o raciocínio, não podem ser apenas resultado de planos de governos, mesmo que investidos pelo voto popular, mas devem se submeter a uma dupla legitimidade de caráter constante: a dos anseios gerais da sociedade e das comunidades especificamente afetadas.
Não se trata apenas de atender as aspirações declaradas ou colhidas em função de técnicas de marketing, mas as que possibilitam ao cidadão e às coletividades situarem-se historicamente, vivendo o aqui e o agora e tendo, ao mesmo tempo, referenciais do passado e responsabilidades para com o futuro.

Muitas autoridades responsáveis pela gestão cultural não têm este entendimento, e disto resulta que a partir de seus gabinetes lançam planos, projetos e idéias de ações, preocupados, muitas vezes, apenas em deixar uma marca pessoal. Ofertam, não raro, aquilo de que já se dispõe, sob novo rótulo.
Buscam aceitação por meio de práticas feéricas, repleta de luzes artificiais, repetidoras da política do pão e circo, e até do circo sem pão, muito apropriada a manter as coisas do jeito que sempre estiveram. Tudo isso geralmente à custa da omissão com as obrigações outras, inclusive as cotidianas e indispensáveis, como a de conservação de estruturas e acervos culturais historicamente consolidados.
Quem assim procede, comete a inconstitucionalidade de deixar de ouvir e integrar os destinatários e co-responsáveis pelas ações culturais.

E mais que desrespeitar um formalismo jurídico, abre mão de suas cumplicidades em favor da luta pela concretização dos planos traçados, ficando frequentemente assemelhado àquele que faz pregações no deserto.As políticas culturais, historicamente praticadas nos moldes das ciências concebidas no século XIX, vêm, portanto, regendo-se pelo critério da exclusão, seja das práticas antecedentes, seja dos demais legitimados sociais.

Os gestores culturais prestariam grande serviço aos seus administrados se observassem a sugestão de Victor Hugo de homenagem às lógicas da pluralidade e do acúmulo, que fazem a regência e a riqueza das expressões culturais.


HUMBERTO CUNHA

Especial para o Caderno 3
O autor é professor de Direito Constitucional e Direitos Culturais nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da Unifor. Advogado da União.

Jornal Diário do Nordeste - 15 de Fevereiro de 2009
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=615278

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