Entrevista com Ednardo realizada por Magno Córdova – Mestrado UnB - Música do Ceará e do Piauí - 2006
Rompendo as entranhas do chão:
Cidade e Identidade de Migrantes do Ceará e do Piauí
na MPB dos Anos 70
Magno Cirqueira Córdova
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Nota:
Zeca Zines, leu a excelente defesa de tese de Magno Córdova, para a UnB (Universidade de Brasília) em sua Pós-Graduação em História Cultural - Agosto de 2006.
O autor está transformando a tese em livro abrangente, de importância fundamental, onde foca nomes e trabalhos poéticos e musicais desta geração, que conquistou o Brasil e Exterior, dentro de contextos e nuances universais, brasileiras e regionais, com especial destaque a Música Popular Brasileira.
É um estudo minucioso e rico de informações, onde as obras artísticas de vários artistas migrantes do Ceará e Piauí se inserem de forma plena na MPB entre eles: Ednardo, Fagner, Belchior, Fausto Nilo, Augusto Pontes, Climério, Clodo, Clésio, e muitos outros nomes de igual importância.
Zeca Zines aplaude com entusiasmo a iniciativa de Magno Córdova e faz votos que este livro esteja disponível no mais breve tempo, a todos que se interessam pelo assunto.
A seguir a entrevista de Ednardo concedida a Magno Córdova.
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MC - Na época em que alguns dos parceiros do Ceará residiram em Brasília, no início da década de 70, vocês continuaram mantendo contatos? A concepção do disco coletivo Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem ocorreu quando todos (você, Rodger e Teti, principalmente) já se encontravam em São Paulo, ou a idéia de um trabalho conjunto, mais orgânico, já havia sido cogitada em Fortaleza?
ED - Quando residíamos em Fortaleza, o tempo de todos era ocupado pelo aspecto de fazer músicas, e letras, teatro, artes plásticas, etc., tudo que estivesse no contexto artístico.
Também tínhamos nossos estudos em faculdades e trabalhos. Naquela época, até talvez, por causa do curto tempo disponível de cada um, não existia na maior parte dos participantes, a preocupação organizacional, projetos, ou cogitar trabalhos futuros.
A vida era, como é, urgente!
Claro que alguns tinham o enfoque de pensar o todo, entre eles, Augusto Pontes, sem dúvidas, tinha esta visão futura, mas o pessoal, embora se reunisse sempre que possível, tinha tanta premência de se expressar em tão exíguo espaço de tempo.
De certa forma sabíamos que, uma parte significativa das pessoas iria desaguar em outros espaços, nossa cidade de Fortaleza, naquele momento era pequena, ou não comportava tanta criatividade, certo é que existia uma inadequação às propostas de todos naquele momento. Não sei se houve projeto arquitetado neste sentido, as necessidades de todos foram se desenvolvendo de forma grupal e individuais sem concepções à priori.
O fato é que no êxodo existem direções em três partes, alguns foram para Brasília, outros para o Rio de Janeiro e outros para São Paulo. E sempre que possível mantínhamos contactos, claro que sem as facilidades de internet e comunicações de hoje em dia. Mas existia esta energia que rolava sempre que era possível uma reunião. Às vezes maravilhosas, outras deixavam a desejar, era um tempo de exceção, ditadura, competição de espaços.
MC - Você se lembra - e pode narrar - a circunstância em que se deu o contato inicial com Climério?
ED - A ponte inicial com o Climério, foi feita pelo parceiro Augusto Pontes em 72, após um show que realizei na UnB – Auditório Dois Candangos, para os estudantes de Brasília, estavam presentes na platéia Augusto Pontes, Yeda Estergilda, Climério e Clodo e uma quantidade muito grande de estudantes e professores, estava tudo lotado, cadeiras, e no chão, tudo apinhado de gente.
Para entrar no palco, já que todos acessos estavam bloqueados pelo excesso de pessoas, tive que subir por uma escada que arranjaram no momento e através de uma janela lateral que ficava a uns dois metros de altura, dar um salto diretamente para o palco, pra delírio da platéia que comentou que foi uma das entradas em cena das mais sensacionais e inusitadas.
No dia seguinte os irmãos Ferreira, convidaram para ir na casa de Dona Alice, matriarca da família. Lembro até hoje seu sorriso luminoso, com voz suave, pautada e amiga. Foi ótimo, tocamos violões, cantamos, tomamos cervejas e principalmente se fez amizade plena que resulta em várias parcerias artísticas.
MC - Como foi que surgiu a idéia e como se deu a sua atuação junto aos irmãos Ferreira no primeiro disco da carreira do trio, o São Piauí?
ED - Na casa de Dona Alice, escutei algumas músicas do Climério, Clodo e Clésio e gostei da sonoridade e letras daquelas músicas. Disse pra eles que quando tivesse oportunidade eu gravaria um disco com eles. Anos depois Climério foi residir em São José dos Campos / São Paulo, em pós-graduação universitária, no INPE, nossos contatos foram mais freqüentes, ele foi diversas vezes à minha casa em São Paulo, e convidava para também ir a São José dos Campos. No Bar do Pedro entre músicas, violões e cervejas, a idéia de nossa parceria foi sendo construída.
Tinha a Frô do Avaré, Flying Banana (Carlão, Bê e Passoca), os shows que fiz em São José. Foi quando em 76 a música Pavão Mysteriozo, foi sucesso no Brasil e exterior e falei pro Climério – “Sabe aquela lance que conversamos em Brasília, acho que agora eu posso sugerir para gravadora, o disco de vocês”.
O Cli tomou um susto e disse que o que eles estavam pensando era eu gravar músicas deles, e eu disse que minha idéia era outra: Eles próprios gravarem suas músicas.
Foi uma noite de justificações do Climério tentando convencer que eles não eram artistas, não tinham voz pra isto, cada um já realizava outro trabalho diferente desta praia, e eu tentando convencer que eles podiam sim, gravar este disco com suas vozes.
Terminamos a noite, eu, o Cli, o Flying Banana, a Frô do Avaré (Evelise), sentados na calçada frente ao Banhado que tem uma vista privilegiada pro Vale de São José dos Campos, era inverno e estava amanhecendo, e no brumado, lá ao longe se via um trem envolto em neblinas, o céu se confundia com a terra e formava no difuso um espaço mágico e eu falei - Olha ali Cli, está vendo aquele trem flutuando nas nuvens, parece um cinema impossível, aquela máquina e seus vagões estão voando aos nossos olhos, vocês podem sonhar um pouco mais, e ver que é possível você e seus irmãos gravarem este disco?
Semanas depois, nos reunimos em São Paulo em quatro dias e noites, gravando no “Tenda Som” – (pequeno estúdio em minha casa) umas vinte e tantas músicas em k7 que levei à direção artística da RCA, (atual BMG), e o Cli falando rapaz isso é somente uns “Pensames”, eles não vão querer.
Foi difícil convencer a direção artística da gravadora, levei-os ao programa da TV Bandeirantes – Mambembe, produzido por Walter Silva, onde também o Pessoal do Ceará se apresentava semanalmente junto a outros participantes, e o Walter os colocou pra cantar, chamei um assistente de direção artística da gravadora para dar uma olhada, pois no dia seguinte os irmãos Ferreira estavam voltando pra suas casas, e na prorrogação, do segundo tempo, minutos finais, recebi o telefonema da gravadora autorizando a gravação do disco São Piauí, fui avisá-los na Rodoviária de São Paulo, que ficava ao lado da Estação da Luz.
Os ensaios e arranjos foram realizados em minha casa durante duas ou três semanas, junto aos músicos de base. O disco entre gravações, mixagens, artes gráficas de capas, em pouco mais que dois meses. E o resto é história, deste disco inaugural da maior importância – São Piauí.
MC - A música "Folia ou Pressa" tem algum significado histórico especial para você, ou a sua "(re) descoberta" se deu mais recentemente?
ED - O disco “Única Pessoa” é formatado com objetivo onde minha ação principal é de intérprete.
Há muito tempo queria realizar disco com esta característica.
Escolhemos temas que se coadunavam e foram feitas seleções de mais de 80 músicas até chegarmos naquele perfil, com obras de autores de várias localizações abrangentes.
Tem autores do Ceará, Piauí, Maranhão, Pará, Rio de Janeiro, Goiânia, Paraíba, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, e além Brasil tem música de autora de Cuba.
Só interpreto músicas de outros quando gosto, e somente quando me dá prazer em cantá-las, então vejo todas estas músicas de forma especial, mas entre umas e outras, não existe um significado de diferença, todas fazem parte do universo, que não necessariamente, representa histórico pessoal complementar, é mais por gostar de cantar, mesmo.
MC - No disco Cauim você gravou "Terezina - 40 Graus". (Eu não conheço o filme Cauim, onde talvez haja algum esclarecimento sobre a pergunta que se segue). Como foi - e é - sua relação com a cidade de Teresina, em particular, e com o território do estado do Piauí, de uma maneira geral?
ED - Tenho proximidade artística e existencial com o Piauí, grandes amigos e amigas, alguns parceiros como Climério, Brandão, realizei produções artísticas como por exemplo na Massafeira que resultou em disco duplo, onde estão Chico Pio, Ana Fonteles, Zezé Fonteles, Jabuti, todos eles do Piauí, produzi o primeiro disco dos irmãos Ferreira, Climério, Clodo e Clésio, é uma lista representativa, que inclue também entre os amigos, Cinéas Santos, Wellington Dias, Jorge Mello, e tantos outros.
Aliás, o Ceará e Piauí, têm historicamente muitos itens em comum e complementar. A Serra da Ibiapaba é uma espécie de “fronteira” permeável. Existe história que antes, o Estado do Piauí, não tinha em seu território parte que dava pro mar e os governos destes Estados trocaram territórios, uma parte do pé de serra da Ibiapaba que era do Piauí, por uma parte do litoral que era do Ceará – que hoje representa aquela faixa de Parnaíba.
Além disto tem o grande fluxo de seus habitantes que se dá em duas vias de mãos, corações e mentes, tanto do Ceará para o Piauí, quando do Piauí para o Ceará. Tanto que tranqüilamente existe este fluxo há muito tempo, onde todos se sentem em sua própria casa.
MC - Você pode me falar a respeito da inclusão de "Rasguei o teu retrato" e "Na asa do vento" ao seu repertório discográfico?
ED - Desde menino, escuto músicas de compositores, autores e intérpretes que antecederam nossa geração, contemporâneos e novos, tanto na área popular quanto clássica, é natural que esta memória afetiva esteja presente eivando vários momentos.
Em meus discos além de ter aberto espaços para inúmeras parcerias, vez por outra reservo alguns espaços para interpretar obras de outros autores, além destas que você cita tais como, Cândido das Neves e João do Vale, Luiz Vieira, Belchior, Fausto Nilo, Petrúcio Maia, Humberto Teixeira, Lauro Maia, Augusto Pontes, Graco, Stélio Valle, entre muitos outros, o que se concretiza mais claramente no disco “Única Pessoa” que gravei em 2000, disco que realizei como intérprete de músicas de Chico Buarque, Milton Nascimento, Fernando Brant, Totonho Villeroy, Bebeto Alves, Nilson Chaves, Jamil Damous, Clésio Ferreira, Augusto Pontes, Maria Tereza Lara, Javier di Mar-y-Abá, Régis Soares, Chico Pio, Neudo Alencar, Rogério Soares, Lauro Maia, Humberto Teixeira, Antonio Cícero, Orlando Moraes, com uma única música minha em parceria com Chico César.
MC - A canção "Serenata pra Brazilha" foi composta à época do lançamento do Imã? É possível você falar sobre esta composição e sobre o lugar ocupado pela cidade de Brasília em sua trajetória?
ED - Serenata pra Brazilha foi realizada durante a gravação do disco Imã, em 79 junto ao disco duplo Massafeira, os três discos foram lançados em 80. Esta música inclusive foi gravada somente com voz e violão, uma espécie de serenata pra uma cidade que talvez não comportasse serenatas, a não ser nas periferias das cidades satélites, mas achei interessante contrapor o fato quase que impossível de se fazer uma serenata no plano piloto e suas asas, mas afeito às preocupações políticas partidárias e funcionalismo público, mas não só isto, como uma espécie de toque de união geral à alma do povo brasileiro, a música foi gravada no disco logo após a composição feita.
Gosto muito de Brasília, a idéia estética de cidade construída, de forma moderna e pensada, no Brasil.
Tem outras cidades construídas desta forma, mas a idéia de conjunto arquitetônico de Brasília é fenomenal nas concepções de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.
Mas não é só isto que me liga a Brasília, meu pai, Professor Oscar Costa Sousa, falava muito de Dom Bosco, de suas profecias, seus métodos de ensino, lia ensinamentos com constância, tanto que fundou em Fortaleza, como professor e diretor, o Ginásio Dom Bosco, no qual exerceu magistério por mais de 50 anos.
Então veio a vontade de conhecer a concretização realizada por Juscelino Kubitscheck, que igualmente lia Dom Bosco.
Juntou-se ao fato que alguns parceiros e companheiros de artes também foram morar nesta capital, e ao chegar pela primeira vez, fiquei extasiado por sua energia, é lindo o cerrado, o planalto central tem de verdade coisas muito especiais, além de ser a concentração do status quo político da nação.
Pois Brasília não é apenas a sede do poder político brasileiro.
Nesta música coloco Brasília com Z, a última letra das incógnitas, como se aprende na álgebra.
Z no alfabeto grego também significa vida.
Tenho muitos amigos em Brasília. Também é um desaguar de habitantes de todas as partes do planeta, é uma “ilha” e um “espaço-porto”, onde aí encontrei também os descendentes dos primeiros desbravadores, chamados “candangos” que ajudaram construir a cidade, e nesta “cosmo-visão” a música já estava pronta e veio num repente.
domingo, 28 de dezembro de 2008
Rompendo as Entranhas do Chão
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