terça-feira, 18 de outubro de 2011
Enredo Revista da Cultura
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
Massafeira 30 Anos & Manifesta!

Uma multidão de 5.000 pessoas ocupou todos espaços do Teatro e Praça e Jardins do José de Alencar, para assistir e participar das performances de mais de 350 artistas das diversas áreas - música, poesia, literatura, cinema e vídeo, artes plásticas, dança, humor, instalações e varias outras performances.

Trinta anos depois de seu lançamento, o disco "Massafeira" ganha reedição em CD, encartado num livro coletivo sobre o antológico encontro de artistas cearenses. O material será lançado sábado, com 12 horas de atividades culturais no mesmo Theatro José de Alencar que recebeu o evento original.
Depois das diversas comemorações e homenagens aos 30 anos do show Massafeira Livre que aconteceram em março passado, será finalmente lançado oficialmente o álbum duplo Massafeira em CD remasterizado.
A nova edição do disco, um dos registros mais importantes da música cearense, vem encartado no Livro "Massafeira 30 Anos - Som Imagem Movimento Gente".
O lançamento será marcado por um evento multimídia, reunindo também artistas do coletivo ManiFesta, no sábado, 18 de setembro, a partir das 18 h, em várias dependências do Theatro José de Alencar.
Com entrada franca, todos os espaços do TJA serão ocupados por artistas da música, dança, literatura, teatro, intervenções, teatro, cinema e vídeo e exposições de fotografias, quadros e esculturas.
No palco principal, acontecerá um encontro de gerações musicais em que se apresentarão Ednardo, Rodger Rogério, Calé Alencar, Lúcio Ricardo, Chico Pio, Régis e Rogério, alguns dos remanescentes do Massafeira Livre, e artistas que se destacam na atual cena musical cearense, como Vitoriano, Daniel Medina, Breculê, Jonathan Doll, Coletivo Bora! e Renegados, para citar alguns.
A programação começa ao final da tarde, e, se estendendo até 6 da manhã de domingo.
Imagens inéditas filmadas durante a Massafeira Livre em 1979, em negativo 16mm, serão exibidas durante o evento.
Com a intenção de dar continuidade ao documentário, será realizado durante a noite um filme coletivo ao vivo, em que o público poderá colaborar levando suas filmadoras, máquinas fotográficas e até câmeras de celular, para captar imagens durante a realização do evento.
Livro
Reunindo textos de diversos autores, como Calé Alencar, Rosemberg Cariry, Brandão, Mona Gadelha, Ruy Vasconcelos, Michel Platini, Gilmar de Carvalho, Henilton Menezes, Eleuda de Carvalho e Fausto Nilo, o livro foi organizado pelo cantor e compositor Ednardo, que também contribuiu com um texto.
A publicação conta com muitas imagens inéditas, fotos registradas por Gentil Barreira, ilustrações assinadas por Brandão, fotogramas do filme realizado por Ednardo durante a Massafeira, imagens de Rosemberg Cariry, além de trabalhos de vários outros artistas.
A oportunidade de avaliar a importância do resgate e da permanência da Massafeira até os dias de hoje vem abrir espaço para a discussão sobre as políticas culturais e a movimentação artística local, propondo a criação de novos projetos que proporcionem um funcionamento mais efetivo de toda a cadeia produtiva das artes no Ceará.
Esse esforço já possibilitou a criação de grupos como a ACR, Associação Cultural Cearense do Rock (1998); Acemus, Associação Cearense dos Músicos (1997); Clube Caiubi de Compositores (1998); Bora! Ceará Autoral Criativo (março de 2010) e, mais recentemente, ManiFesta.
Para Ednardo, o lançamento do pacote Massafeira Livre em Livro e CD representa a realização de um sonho. "Além do registro de todo esse material iconográfico e em áudio, inclusive vai ser exibido sábado um filme inédito gravado na Massafeira.
"Creio que vai dar um gás para essas novas gerações que vieram de trinta anos para cá, como um parâmetro de empolgação e que assim eles reconheçam que podemos repetir isso coletivamente outras vezes".
Sobre esse intercâmbio com o novíssimo Pessoal do Ceará, Ednardo acredita que é importante que os artistas de sua geração se envolvam musicalmente com os atuais e trabalhem juntos também nos palcos.
"Creio que os integrantes do ManiFesta vão dar uma gigantesca contribuição ao evento, com o mesmo entusiasmo que ocorreu na Massafeira", aposta o compositor.
"É uma nova galera que está surgindo e pode dar continuidade ao espírito da Massafeira, essa energia de estoque que o sol tem para se pôr e nascer no dia seguinte", filosofou o autor de "Terral" e "Pavão Mysteriozo".
Fique por dentro
A Massafeira Livre
Em março de 1979, o Theatro José de Alencar, em Fortaleza, abriu suas portas durante quatro dias para mais de 400 artistas, entre músicos, poetas, atores, dançarinos, artistas plásticos, fotógrafos e cineastas, engajados em apresentar suas manifestações artísticas autorais.
Foi a Massafeira Livre, um movimento cultural coletivo, que envolveu um grande público e revolucionou o conceito das apresentações tradicionais no Ceará, estendendo o evento por mais de 6 horas em cada dia.
Como a música teve um destaque especial, o movimento gerou um disco duplo que em 1980 lançou grandes nomes da cultura cearense e deixou marcada na história a determinação desses jovens artistas.
Na época, já eram destaques nacionais e cantam no disco intérpretes e compositores como Ednardo, Belchior, Fagner, Rodger Rogério, Teti e Petrúcio Maia.
O álbum duplo também tinha as vozes dos então novatos Lúcio Ricardo, Ângela Linhares, Chico Pio, Ana Fonteles, Régis & Rogério, Tânia Cabral, Calé Alencar, Mona Gadelha, Pachelly Jamacaru, Ferreirinha (hoje Francisco Casaverde), Graco, Vicente Lopes, Wagner Costa, hoje Tazo Costa e Sérgio Pinheiro, entre outros.
NELSON AUGUSTO
Repórter
Uma grande "virada cultural", das 18h de sábado às 6h de domingo, movimentou a casa de espetáculos.

"Clareia, manhã, clareia / Abre os teus dedos, manhã / E deixa essa casa cheia / Do teu cheiro de romã".
Com casa cheia ao longo de 12 horas de shows, cortejos, exposições, performances de dança, teatro e poesia, uma grande "virada cultural" marcou a celebração dos 30 anos do disco "Massafeira Livre" e o lançamento de sua reedição em CD, acompanhada de livro.
Como nos versos de "Aurora", composição de Ednardo e Belchior presente no disco, o Theatro José de Alencar permaneceu lotado, madrugada adentro, para um encontro entre o público e artistas cearenses de várias gerações.
Ao longo da semana passada, o Diário do Nordeste publicou uma série especial de matérias sobre o tema.
Como destaque da noite, compositores e intérpretes remanescentes da Massafeira, realizada em 1979 no mesmo TJA dando origem ao LP lançado no ano seguinte, subiram ao palco para apresentar as canções do disco. Emoção compartilhada com a plateia, atenta a melodias que atravessaram três décadas.
Se muita gente não conhecia as músicas a ponto de cantar junto (o próprio Ednardo, idealizador do novo evento, se desculpou por ler as letras de algumas canções), foram unânimes os aplausos diante de um reencontro de tantas simbologias.
Enquanto muitos espectadores que participaram da edição original da Massafeira vibraram com a chance ver artistas como Régis e Rogério Soares, Calé Alencar e Chico Pio se revezando no palco, outros não escondiam a surpresa diante do primeiro contato com as interpretações marcantes de Lúcio Ricardo e Rodger Rogério.
Ao final do show, todos se reuniram para entoar, agora sim em companhia da plateia, "Enquanto engoma a calça". "Porque cantar parece com não morrer...".
Encerrado pouco depois das 23h, o show marcava apenas o início da maratona artística nos vários espaços do TJA: do teatro Boca Rica ao Morro do Ouro, da calçada aos jardins.
A aproximação veteranos e jovens representantes da música cearense foi exemplificado pela presença de grupos como o Breculê e os Renegados, além dos compositores integrantes do movimento Bora! - Ceará Autoral Criativo, entre diversos nomes de outras linguagens.
O público se manteve numeroso ao longo da madrugada, confirmando a demanda por uma "virada cultural" em Fortaleza. Segundo a produção, cerca de 4 mil pessoas passaram pelo TJA, aplaudindo aproximadamente 350 artistas. Em uma noite memorável.
DALWTON MOURA - EDITOR DO CADERNO 3
Fonte: Diário do Nordeste
quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
O Tamanho da Estrada de Santana
Ruy Vasconcelos
Naquele tempo e por uma série de razões a canção popular era um veículo opulento. O mercado ainda não estava tão estruturado. E havia um limite, um constrangimento à criação, que, paradoxalmente, a desafiava: a falta de liberdade de expressão. Mas havia também o fato mais ou menos cru de que os consumidores de disco eram quase que exclusivamente de classe-média. E, claro, de uma classe-média que pela primeira vez na história do país se beneficiava de uma educação universitária massificada.
A década de 70, no rescaldo dos inquietos 60, viu surgir pólos de criação onde houve universidade forte fora do eixo Rio-Sampa: na Bahia, em Minas, no Recife e em Brasília. Mas Fortaleza também esteva presente e de forma marcante.
O que se convencionou chamar de Pessoal do Ceará não é uma ficção. Mas um grupo que de forma mais ou menos organizada soube repartir tarefas. Entre intérpretes, compositores, letristas, instrumentistas, produtores, vimos surgir nomes como os de Raimundo Fagner, Belchior, Ednardo, Petrúcio Maia, Fausto Nilo, Brandão, Téti, Rodger Rogério, Ricardo Bezerra, Manassés de Sousa, Cirino, Augusto Pontes, Marta Lopes e tantos outros.
Em particular, salta aos olhos a inata qualidade literária do texto de certas canções. Brandão, Belchior e Fausto Nilo contribuíram bastante neste sentido. As letras de Brandão são como poemas autônomos que por acaso foram musicados, tal sua excelência. Belchior foi, então, um atento ouvinte de Dylan e de outras grandezas do universo pop. E Fausto Nilo, uma mente arejada o suficiente para pensar a palavra em música como uma amplidão de espaço que vaza para fora do som.
A diferença aqui é que todos os três não pensavam apenas em música. Pensavam mais longe, em algo que sendo uno é diverso, e responde pelo nome de arte. Como a vida.
Por seu turno, há um aperreio e um improviso muito grande em certas gravações se contrapostas à assepsia sonora de hoje. Quando se escuta coisas como “Estrada de Santana” dá para perceber o quanto há de bricolagem nessas sessões de estúdio.
Algo que está sendo resgatado, no momento presente, pela pesquisa esquizofrênica e ousada de Dustan Gallas: soar artesanal dentro de um estúdio digital. No caso dessas sessões de estúdio nos 70 eram quase gravações ao vivo. Ou pouco mais que isto. Havia uma comovente simplicidade e falta de atavios, que faz lembrar velhas (e doces) senhas: “da rodoviária para o estúdio”, “arrumar o cabelo e seguir”, “meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem”.
Sofisticada artesanalidade. Tempos de constrangimento geram uma arte exigente assim. Há algo de muita emergência em canções como "Estrada de Santana". Algo que nos compele a percorrê-la de novo a cada vez que a escutamos. O lirismo misterioso, tenso e brilhante desse texto vale por dias bonitos de chuva: "Quem ouviu passarinho cantar,/ao meio dia, no silêncio de um lugar,/sozinho e sozinho esperou/que a noite trouxesse a esperança do sonho/ e a companhia do luar".
O que seduz nessa canção não é apenas sua vivaz referência à paisagem de um interior qualquer do Ceará. Mas o modo como ela nos instala lá: os passarinhos, o riacho temporário, a mata, o pequeno cemitério rural, etc. E, no entanto, escutando-a com melhores fones-de-ouvido, percebemos que essa vivacidade vem menos por conta da descrição da paisagem e mais pelo fato de ela ser evocada por um exilado: "Mas sou eu que não posso voltar//Não, não, não corro a Estrada Velha de Santana [...]". Essa impotência de estar nos lugares da eleição pesa nas carnes do cearense como uma maldição de proporções devastadoras, bíblica mesmo.
Em "Estrada de Santana" o migrante exilado mal dimensiona, de fato, o pedaço de vida que lhe foi roubada - embora sinta na carne que o foi: "Sem jamais entender o que alguém perdeu./ E perdeu, e ficou assim." Este "assim" ganha uma função adjetiva, como na fala popular. Algo que se aproxima de "desalento", "desesperança". Segue para além de uma simples e casual troca de estado de humor. Implica algo mais fundo: uma mudança na personalidade por razões de saudade de casa.
Ora, nenhum outro povo do Brasil, como o cearense, é mais especialista nisso: saudade de casa. E porque vivemos no mundo. E, claro, nem sempre por escolha. Assim "Estrada de Santana" assoma como mais uma das grandes canções de exílio que povoam o cancioneiro cearense. Um ilustre conjunto que vai de Catulo da Paixão Cearense (que era filho de cearense migrado para o Maranhão) ["ah, que saudades do luar da minha terra!"] e passa pelo ciclo de letras composto por Humberto Teixeira para músicas de Luiz Gonzaga e que incluem clássicos como "Asa Branca".
No início de "Tudo Outra Vez", Belchior nos diz: "Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa". É claro que estas palavras possuíam, à época, uma ressonância e uma urgência política mais vasta, mas não menos radicam nessa tradição do exílio. A mesma cantada por Ednardo ("Eu venho das dunas brancas/ Pr'onde eu queria voltar"). É apenas notório que, por razões óbvias, os duros anos de ditadura tenham acerado ainda mais essa condição de exilados.
Mas também em “O Astro Vagabundo” há inquietações de sobra para traduzir esse período. Qualquer coisa de muito sombrio e belo habita nessa canção. Nela o exílio para uma espécie de apocalipse ao mesmo tempo iminente e cotidiano – ou seja, feito daquelas simultaneidades possíveis só em sonhos – é a clássica imagem dos trovadores para o órgão sexual feminino: o pequeno jardim cercado, o Éden.
Dormir nesse jardim é o lenitivo. Esquecer por um lapso o pesadelo da realidade. O arranjo de cordas (que é de Wagner Tiso), os teclados, a amargura, o dilaceramento da voz de Fagner, exaltando-se na segunda parte, tornam a canção de uma sinceridade irresistível.
A lista é longa e a letra é breve. Se pode falar desse período como daquela “noite posta sobre a mesa” de “Asa Partida” – onde, aliás, há este verso que praticamente resume tudo: “eu não queria a vida desse jeito”. Ou seja, essa saudável inquietação diante de uma realidade extremamente defeituosa.
O Pessoal do Ceará pôs essa noite sobre a mesa com uma impressiva nitidez. Há o magistral (e majestoso) final de “Pavão Mysteriozo” ("Eles são muitos/ Mas não sabem voar"), carregado de utopia como nuvens densas num sertão de muitos meses de estio.
Quer dizer, "eles" - todos que não os migrantes - são muitos, também no sentido de poderosos. Mas não tem a dimensão do vôo, do sonho, alimentados por essa torturante saudade de casa que ensina mais do que qualquer escola, porque constitui em si uma odisséia.
O tema também reincide na delicada geografização de “Pequeno Mapa do Tempo”, de Belchior, com seus requintes de analogia entre a sonoridade das palavras e a concreção dos lugares citados. E em que tudo segue em suave crescendo até se chegar à "estrela do norte/Paixão, morte é certeza", que repõe Fortaleza no seu devido lugar - como uma espécie de Jerusalém. Ou, ainda antes disso, claro, essas velas do Mucuripe saindo para o risco e para uma intemporalidade maior do que a morte.
Quase como último espasmo coletivo, houve o disco-coletânea Massafeira. O disco surgiu como o registro e o subproduto mais notável de um evento mais amplo, envolvendo artes plásticas e performances que ocuparam o Theatro José de Alencar e marcaram época em Fortaleza.
Um empenho pessoal de Ednardo, com co-produção de Augusto Pontes, que sempre foi uma sorte de coringa ou eminência parda da galera. Massafeira, o álbum duplo, marcado pela diversidade, é uma espécie de limiar entre gerações. Hoje, um notável cult. Em “Frio da Serra”, a interpretação de Marta Lopes é preciosa. Vívida. Cheia de frescor: "Lá embaixo, no espaço/ as casas estão com frio". Há algo mais cearense do que o modo como ela pronuncia palavras como “poste” [pósti], com esse "s" tendendo a 'sh'; ou, sobretudo, “dinheiro” [dim-êro], onde o "h" é quase supresso, na bela letra de Brandão? [Coisas assim são de grande vigor cultural, embora passem longe do estereótipo ou do sotaque da telenovela].
Outros destaques vão para a barroca balada “Atalaia” ("paisagem de agreste clarim") interpretada à Fagner por Ferreirinha [Francisco Casaverde]; o bandolim do multinstrumentista Zé Maia em faixas como “Vento Rei”; o espontâneo talento de Wagner (depois Tazo) Costa - à época pouco mais que um menino - em "Isopor" ("Eu vou sair desse jogo malvado,/ Você só quer me ganhar"); e a copla medieval “Aurora”, cantada por Ednardo e Belchior, onde ocorrem versos como “sonhos de aurora eu sonhava/ no colo de minha irmã”, ou ainda: “abre as janelas, manhã”.
Aqui, a manhã entra em vocativo. Conversa-se com ela. E essa prosa parece remeter para uma daquelas casas sertanejas: brancas alpendradas, de pé-direito baixo, perto de um açude. Casas de onde nunca deveríamos ter saído, fosse este mundo mais justo. Ou nossa república menos imperfeita.
A importância de Massafeira, tanto enquanto evento como em seu registro fonográfico, ainda resta por ser dimensionada. A impressão, para quem a testemunhou, era a de uma tempestade pop, que até então só víamos no cinema, desabando ao vivo e em cores, durante quatro dias, em Fortaleza. Para descrever o evento, usou-se no encarte do álbum duplo a expressão "carnaval fora de época". Até entende-se o que se quer dizer com isso. Porém Massafeira foi muito além do que esta expressão tenta traduzir. Afinal, carnaval fora de época - hoje em dia - está mais para algo como a micareta, o Fortal ou alguma estupidez do gênero.
O que seduzia na imensa festividade, no exótico, na diversidade, naquele sobejo de contracultura - o fetiche das guitarras e amps, a tal "velha roupa colorida", os cabelos invariavelmente longos, desgrenhados - era a atmosfera em si.
E isso tudo numa acanhada capital do subúrbio, em plena linha do Equador. Na periferia da periferia do mundo. Aquelas guitarras rascantes ecoando pelas galerias e entornos de seu pequeno e charmoso teatro. Era algo de uma notável sugerência de novidade e vida. E, melhor, de novidade na diversidade. E num tempo em que, por mordaças várias, estávamos apenas começando a saborear a delícia de expressar-nos sem censuras. Inclusive as das patrulhas ideológicas de esquerda.
Para um povo, como o cearense, tão pouco afeito a manifestações assim - mais gregárias, em que o herói são todos e nenhum - o evento resta quase como um marco, nota dissonante. Mas de uma dissonância alegre, espontânea e promissora. O que Massafeira legou foi uma enorme fé na capacidade de elocução coletiva a partir de uma Fortaleza, convenhamos, bem mais provinciana que hoje. Não por acaso, chegou a despertar ciúmes em outros estados. Daí que não poucas matérias ao se referirem ao evento, ou a seu registro em disco, insinuarem que a gravadora CBS - a hoje Sony Music, uma das mais poderosas multinacionais da indústria fonográfica - ser acrônimo de Cearense Bem Sucedido, em referência ao poder de barganha do grupo (em especial de Fagner) junto à direção da empresa.
Em tempo, há dois discos que decretam o ponto final desse impulso: o próprio Massafeira, no plano coletivo; e o álbum Beleza (1979), de Fagner, na esfera mais individual. O álbum é de uma formosura dilacerante. Poucas composições. Arranjos opulentos, sob a supervisão de João Donato. Um time de músicos estelar.
Não há uma única faixa onde não reincida o título do disco. Inclusive a própria faixa título, com letra de Brandão que é verdadeiro achado ("e quando se vê o arame/ que amarra toda gente/ pendendo das estacas/ sob um sol indiferente"). A plangência da voz de Fagner chega a seu paroxismo. Guarda mesmo algo de indizível, limítrofe. Em todas as trilhas, tudo é asa partida, dor. Por exemplo, em uma canção (por sinal subestimada) como "Quer Dizer".
Pode-se sentir a cinco quadras de distância a potência elegíaca desse conjunto de canções tristes. A suíte de um trabalho de luto. Luto individual, mas que também se pode entender como canto de cisne ou estender como mortalha dessa fase heróica do Pessoal do Ceará.
Não é nehum segredo de estado, aliás, que os três nomes mais rutilantes do grupo não são propriamente os melhore amigos na face da terra. Mas é ao menos um consolo relembrar que, em tempos idos, eles já se envolveram em colaborações mais estreitas.
Desde então, Belchior tem trabalhado anos a fio na estrada, em turnês - sobretudo pelo interior de São Paulo e pelo Sul. Ednardo exerceu trabalhos diversos a partir do Rio, sua base. E Fagner, após um começo fulgurante - a exemplo dos dois outros - em que teve discos tão experimentais como Orós, com colaboração de Hermeto Pascoal - cortejou o mercado de forma mais agressiva e popularesca.
Mas o tempo passou. Será que hoje ainda seria possível produzir, por acaso, um disco conceitual com a contundente amargura de Beleza? Ou um exeperimental com as mirabolâncias de Orós?
Difícil responder. Os tempos são outros. A própria noção de disco é já tão outra.
A importância das grandes gravadoras foi alvejada em cheio pelas novas mídias digitais. O que era um sonho distante, remoto, só possível no Rio ou em São Paulo lá pelos já distantes anos 70, é algo que está ao alcance de qualquer cantor de banheiro: gravar um disco.
Levas de cd's produzidos e gravados em Fortaleza são despejados no mercado mês após mês. Mas qual de fato à importância da primeira geração que, de modo coletivo, dotou o Ceará de uma voz e de um sotaque bastante distintos?
O tamanho dessa Estrada de Santana é uma boa medida para se sair atrás de uma resposta. Daquelas capazes de preencher a moral de uma história. O momento foi ímpar. E eles eram jovens.
Não houve solução de continuidade. Ou sequer uma geração subseqüente que soubesse abiscoitar essas finezas. Dialogar com elas. Como quase tudo neste país, esse momento não se desdobrou para fora de si. Cristalizou-se.
E claro, a vida não estava ganha. E era preciso ganhá-la. Nesse processo, se foi um pessoal. Alguns devotaram-se a um sucesso um tanto tacanho. Outros desapareceram dentro daquela noite.
E a mesa em que ela estava posta, por um mau agouro, talvez se tenha convertido apenas num balcão para negócios sortidos e bem menos espontaneidade e arte.
Quantos de fato souberam do tamanho dessa estrada?
Nota - artigo originalmente publicado no jornal O Povo, em 2003, em versão abreviada. Dica: é possível baixar na íntegra o álbum duplo Massafeira (1980) pela internet.
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Blog de Ruy Vasconcelos - AFETIVAGEM
http://afetivagem.blogspot.com/2008/12/o-pessoal-do-cear-um-encmio.html
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Ruy Vasconcelos é Jornalista, Escritor e Tradutor.
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
Receita da Felicidade - Ednardo
Receita da Felicidade
Ednardo
Ultimamente ando às vezes preocupado
Vendo a cara tão risonha das crianças
Nas fotos dos anúncios
Nos cartazes das paredes
Dando idéia que algo vai acontecer
É receita certa pra sensibilizar
Pra esconder, pra mentir ou pra vender
Veja as caras tão risonhas
Tão lindinhas, tão risonhas
Nos jornais, nas paredes, nas TVs
Eu não gosto destes dedos que me apontam
Eu não gosto destas frases que me dizem
"O futuro deles está em suas mãos..."
Pois é seu Zé, sei não...
Não me esqueço que algum dia fui risonho
Com u'a carinha bonitinha pra valer
Quem guardou o meu futuro
Quem guardou o meu futuro
Quem guardou o meu futuro - me dê
(Esta música foi feita e gravada em 1977 por Ednardo em seu disco O Azul e o Encarnado)
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A Suécia acaba de banir a publicidade na TV dirigida às crianças, com apoio de 88% da população. No Brasil nunca se fez esse tipo de pesquisa, mas acredito que, apesar de todas as diferenças culturais e econômicas existentes entre os dois paises, as respostas seriam semelhantes. Afinal não é justo impor pressões comerciais às crianças quando elas ainda não têm idade nem para diferenciar ficção da realidade.
Aqui, a situação agrava-se com a cruel distribuição de renda. Os anúncios estimulam um consumo que a maioria dos pais não pode realizar, aumentando a perversidade do problema, com tristes consequências. Como a do menino da periferia que, ao ser detido pelo segurança de um supermercado tomando um danoninho, disse estar apenas querendo saber que gosto tinha esse produto tão anunciado na televisão.
Alguns países foram além do sugerido pela Diretiva Européia.
A Alemanha proibiu a inserção de publicidade em qualquer programa infantil. Nos canais públicos italianos não pode haver propaganda em programas infantis e na França o merchandising é proibido. A recente decisão sueca é ainda mais avançada e se apóia, além da pesquisa, na constatação de que as crianças não nascem com anticorpos necessários para se defender das pressões comerciais e, por isso, têm direito à zonas protegidas.
Trecho de matéria publicado originalmente na Revista E do SESC-São Paulo/Dezembro de 2004 - Por Laurindo Leal Filho - também publicada no site Midiativa.
Para ler a matéria completa - http://www.midiativa.org.br/index.php/midiativa/content/view/full/1890
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As crianças e a mídia no Brasil
Em nosso país, as crianças apresentam uma grande exposição à mídia.
O Painel Nacional de Televisão do IBOPE indicou que as crianças brasileiras entre quatro e 11 anos passam uma média de 4h 51min 19s por dia em frente à TV, ocupando o primeiro lugar mundial em consumo de mídia televisiva, passando mais tempo assistindo TV (cerca de 33 horas semanais) do que na escola (23 horas).
Crianças de vários países passam, pelo menos, 50% mais tempo em frente à TV do que
realizando qualquer outra atividade fora da escola, incluindo estar com amigos e familiares ou realizar deveres de casa.
A criança tem-se tornado uma “consumidora”, incentivando grandes empresas a investir no desenvolvimento de produtos para esse mercado. A criança não apenas consome, mas também influencia na decisão de compra de produtos para adultos. Estima-se que 30 bilhões de reais circulem anualmente no Brasil na forma de mesada ou renda própria de crianças e adolescentes.
Personagens da televisão têm-se transformado em um grande filão econômico mundial, transformando-se em temas de festas infantis, artigos de papelaria ou guloseimas. Em países desenvolvidos, os fabricantes participam até mesmo da criação de personagens, avaliando seu potencial para se transformarem em itens de consumo. Quem financia a permanência no ar dos
programas infantis é a propaganda, e as crianças brasileiras são expostas a cerca de quatro mil comerciais por mês.
A lógica e o raciocínio são dispensáveis para persuadir as crianças por meio de comerciais.
O segredo é investir na fantasia, na mágica, na aventura, utilizando temas que versem sobre relações afetivas e familiares para vender produtos, marcas ou comportamentos. Devem-se criar conexões entre suas fantasias e o estabelecimento de hábitos de consumo de interesse dos anunciantes.
A televisão afeta comportamentos, contribuindo para a obesidade infantil, o despertar precoce da sexualidade e o aumento da violência entre as crianças e jovens.
Esses dados indicam forte presença da mídia no dia-a-dia das crianças brasileiras e um grande investimento em publicidade voltada para a criança na TV.
Pouco se sabe, contudo, sobre o impacto dos “modelos de relacionamento” da mídia nos relacionamentos reais das crianças.
(Trechos de matéria publicada na Psicologia em Revista, Belo Horizonte, jun. 2007 por Luciana Teles Moura, Agnaldo Garcia - Convivendo no intervalo: relacionamento interpessoal de crianças em comerciais de televisão voltados para o público infantil).
Para ler na integra: http://www.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20080521171353.pdf
domingo, 7 de setembro de 2008
Livro - No Tom da Canção Cearense - Wagner Castro

MÚSICA E POLÍTICA EM WAGNER CASTRO
Apresentação do Livro – NO TOM DA CANÇÃO CEARENSE - Do Rádio e Tv, dos Lares e Bares na Era dos Festivais (1963 – 1979) - Wagner Castro - Fortaleza: Edições UFC, 2008
292p.:il.
ISBN: 978-85-7282-292-3
Professor Gilmar de Carvalho
Somos um povo que canta, mesmo quando não tem motivos para cantar. A música deve vir da palma dos coqueiros, onde cantava a jandaia do poema indianista. Do batuque das senzalas e das procissões das irmandades religiosas. Também do canto do trabalho das fiandeiras, dos colhedores de algodão, de coco e das barcarolas dos que vivem do mar.
Tudo pode vir a ser música: vento, ruídos urbanos, assobio de um fragmento de canção que ficou e o acorde plangente de um violão seresteiro.
Wagner Castro, historiador e músico, une rigor e criatividade numa pesquisa que precisava ser feita. Agora, temos o resultado do seu mestrado em livro. Foi orientado por um “peso-pesado” da cultura no Ceará: Dilmar Miranda.
Wagner sabe o que diz e o que faz. Só poderia mesmo dar em um livro que se lê com prazer, com uma certa nostalgia (pelo menos pelos que viveram esses momentos) e com a certeza de que a vida continua, a cultura tem sua dinâmica e não se pode retroceder (a não ser na ficção) ou fazer com que a História se repita, mesmo que em tom de farsa, como dizem que Marx disse.
O texto de Wagner segue o cânon da academia, mas flui, vigoroso e inquieto, como o tempo que ele estudou. Tempo de passeatas, de vida regurgitando nas ruas, de gente que pretendia transformar o mundo.
As utopias estavam vivas e eram levadas a sério. A Revolução era um apanágio de muitos, de quase todos. Claro que estamos falando da metáfora de “um dia”, estudado por Walnice Galvão, e não do golpe de 1964, que frustrou os sonhos igualitários de uma geração.
O texto de Wagner, impregnado por essa música, difusa ou contundente, ecoa as vozes do chamado “Pessoal do Ceará” e dialoga com grupos de teatro, manifestos literários, exercícios de “super-8” e experimentações no campo das artes plásticas que ganhavam espaço nos suplementos culturais.
É uma Fortaleza que não existe (terá existido um dia?) a não ser na memória, nos poucos vinis, nos mimeógrafos de uma geração de jovens poetas e nas palmas abafadas de um público que não disse a que veio.
Os festivais uniam política e Indústria Cultural. Vivíamos a mesma angústia levantada por José Ramos Tinhorão (em “A Província e o Naturalismo”) de sermos produtores sem fruidores. A música de qualidade se perdia no ar.
O bar do Anísio, o Balão Vermelho, as cantinas das faculdades, a quadra do CEU e o Teatro Universitário se tornaram pequenos demais para a necessidade de amplificação dos protestos e do que fazíamos naqueles tempos. Os festivais vieram como instância de difusão do que era feito aqui. “Aqui no Canto”, dizia o da Rádio Assunção.
Nossa relação com o disco vinha desde os tempos da Casa Edison, a partir dos primeiros anos do século XX, quando Mário Pinheiro (filho de cearense) gravou Raimundo (Cotoco) Ramos.
O aspecto, aparentemente competitivo, escondia que estávamos todos do mesmo lado: o da liberdade de expressão e da denúncia da violação dos direitos individuais. Instaurava-se uma longa noite de vinte e um anos. E agora?
Nós que queríamos mudar o mundo, agora precisávamos salvar nossa pele. Não poderíamos recuar, sob pena de nos sentirmos covardes. Mas, aonde nos levariam a tortura e a clandestinidade?
Cantar como exercício de liberdade? Por que não?
Houve em 68 na Europa e nos Estados Unidos, mas o nosso ecoou mais forte porque marcado pelo ímpeto de fazer calar uma geração. Viva Cláudio Pereira!
Estávamos nas ruas e, ainda hoje, o auditório da Reitoria da UFC homenageia um ditador que muitos chamavam de “presidente”.
Mas o livro de Wagner precisa ser lido ao som de Rodger, Ednardo, Petrúcio, Belchior, Tetty, Augusto Pontes, Fausto Nilo, Fagner, dentre outros.
Precisamos evocar Aderbal Júnior (depois Freire Filho), José Humberto, Olga Paiva, Nonato Freire, “Gritas” e “Grutas”.
Das cores e formas do pessoal da Casa de Raimundo Cela. Do SIN ao Saco, chegando ao Siriará.
Precisamos filtrar isso tudo e termos a consciência de que vaiamos e aplaudimos, jogamos pedras, muitos foram presos, outros foram mortos, mas a vida continuou e nos trouxe até esse ponto de podermos ver tudo isso, no plano da memória e no livro de Wagner Castro como uma das possíveis leituras feitas desse período tenso, rico, difícil de ser vivido. Esse doloroso rito de passagem de uma juventude para a idade adulta deixou seqüelas que estão vivas até hoje.
Mas o canto se eleva mais alto: “faz escuro, mas eu canto”. Tanta coisa passou, continua o ânimo de deixar marcas, aqui perdidas no éter ou arranhadas no vinil, cuja agulha rombuda insiste em fazer tocar. Já não somos mais jovens, mas estamos vivos. Talvez tenhamos deixado de ser atores para nos tornarmos personagens dessa crônica inquieta. Wagner sabe disso, vai nos cercando, dando conta da cena e fazendo emergir o grito primal por liberdade, ainda que tardia, de uma geração.
O palco improvisado aumenta a importância da performance. A corda do violão se rompe sob a tensão. A voz desafina. Mas os aplausos são fortes, para todos os que viveram esse momento de crise e para Wagner Castro que teve a sensibilidade de levar tudo isso para sua pesquisa que agora acaba em livro.
GILMAR DE CARVALHO