terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Pela volta da alegria aos cortejos


Fonte: Jornal O Povo - Fortaleza / Ceará
Entrevista de Descartes Gadelha concedida à Alline Rodrigues
13 de Fevereiro de 2010
Foto: Edmar Soares
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Músico, artista plástico e macumbeiro. Com 50 anos de maracatu, Descartes Gadelha viu passar pela avenida Domingos Olímpio as mudanças que o tempo trouxe para o maracatu cearense. Compositor, já não sabe quantas loas levam sua assinatura.
Perdeu as contas do que escreveu na vida. Para falar a verdade, ele diz que não sabe nem quantas já fez este ano: tem música na avenida, no terreiro, no disco lançado.
A paixão veio ainda na infância, quando vivia pelas ruas de Fortaleza acompanhando os desfiles: das escolas de samba, dos maracatus, dos blocos e dos sujos.
Ainda menino, virou índio no maracatu, mas queria mesmo era ser do batuque. Quando o corpo franzino deu lugar a um ``mais fortezinho``, como ele se define, correu logo para abraçar o ritmo.
Aos 67 anos, o ``seu`` Gadelha faz loas durante o ano inteiro. Na entrevista para o Vida & Arte Cultura, ele fala sobre sua trajetória e a força da loa no universo do maracatu.
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O POVO - De que forma o maracatu passou a fazer parte da sua vida?

Descartes Gadelha - Desde criança eu já vivia pelas ruas brincando Carnaval. Quando eu era pequeno, eu queria entrar na música, tocando na orquestra do maracatu, mas não podia, porque os instrumentos eram grandes, eram pra pessoas fortes, adultas.
Então eu brincava na ala dos índios e em outros setores. Depois eu fui ficando mais fortezinho e comecei a tocar.
Finalmente eu fui desenvolver esse meu lado de ritmista. Porque eu não sou percussionista, sou ritmista: eu preparo uma peça de música percussiva, entrego pra um percussionista, e ele, em cima desse trabalho, faz o show.
O ritmista cria ritmos. Até hoje, já participei de vários maracatus, escolas de samba, sempre fui envolvido na questão da música de Carnaval.

OP - Foi somente depois de compor os ritmos que o senhor passou a compor letras para as loas?

Gadelha - O meu lado de música é muito mais desenvolvido do que o lado literário pras loas.
É tanto que as minhas letras são muito simples. Eu não sou poeta. Eu faço música e, às vezes, de acordo com o trabalho da música rítmica, escrevo.
A cantiga de maracatu é percussiva, mesmo sendo cantada. Ela é criada de uma complexidade rítmica muito grande, é amarrada dentro de um arranjo percussivo e melódico.
É por isso que o poema, a letra da reza, da loa, fica um pouco limitado. Não dá pra poetizar muito. Primeiro que a pessoa tá contando um fato histórico proposto. Depois nós temos que transformar esse fato histórico em música.
Transformando em música, adapta-se pra uma música percussiva, que é a de maracatu. Então eu faço nesse espírito. Eu não sou compositor, mas as pessoas jogam pra cima de mim, e eu tenho que descascar essa batata pegando fogo (risos).

OP - O senhor saberia dizer quantas loas já compôs?

Gadelha - Nem pra este ano eu me lembro quantas eu fiz. Fiz pro (Maracatu) Solar, pra terreiro de macumba. As pessoas encomendam. Eu faço música de encomenda. Ligam e dizem: ``-seu- Gadelha, tem uma loazinha por aí?``. Às vezes por telefone mesmo a gente compõe, porque eu não tenho muito tempo, trabalho com artes plásticas e outras coisas. Mas não sei quantas já fiz porque é uma peça cujo objetivo é só praquele instante do Carnaval. São músicas pobres, jamais posso fazer uma antologia. Eles terminam de cantar na avenida e nem se lembram mais. No maracatu, a música tem a mesma função da lantejoula na roupa. Você prega na roupa, mas esquece que ela está lá.
OP - Quais são as diferenças mais substanciais entre o maracatu cearense e outros maracatus?
Gadelha - O maracatu é um só. Aqui, na Bahia, na França, na Alemanha, onde existe, o maracatu é um só. As diferenciações são devidas à cultura onde ele é processado. A palavra ``maracatu`` foi utilizada em Recife pra substituir a palavra ``congada``, ou ``reinada de congo``. Na sua essência, ele é a manutenção da tradição da coroação dos reis de congo nas igrejas dos pretos, como a do Rosário e a de São Benedito, que em todo o Brasil tem. Essas igrejas eram construídas e destinadas só às pessoas pretas. Nelas aconteciam as coroações das rainhas em uma solenidade e, depois, os pretos iam comemorar tocando seus batuques, e isso foi se desenvolvendo. Em Recife, com o aumento do movimento carnavalesco, esses reinados passaram a fazer parte do Carnaval. Perderam a característica do reinado, da congada, que acontecia em outros meses do ano. Quando entrou pro Carnaval, as pessoas passaram a ridicularizar os grupos de negros que faziam a festa e chamaram de maracatu, pejorativamente. O apelido ficou e passou a ser um substantivo próprio, uma identificação dos maracatus.
OP - E quando essa manifestação chegou ao Ceará?
Gadelha - Onde teve negro, tem essas expressões folclóricas. Como em Fortaleza tinha, chegava negro no Ceará e era distribuído pro Maranhão e outras regiões, aqui tiveram essas festas. Em 1936, 1937, um rapaz saiu daqui, foi passar uns dias em Pernambuco e trouxe a palavra ``maracatu`` para substituir a palavra ``congada``. Retirou e botou maracatu. Raimundo Boca Aberta era cantor, artista.
A essência do maracatu, desde quando o negro chegou ao Brasil, sempre teve. Mas a palavra veio por ele. Os maracatus sempre participavam aqui de determinados eventos: aniversários, batizados, festas religiosas, não como maracatu, mas como grupos de congos. Com a palavra maracatu, o grupo tornou-se mais carnavalesco e passou a ser composto mais por foliões. No primeiro colocaram o nome de Az de Ouro. Os maracatus foram aparecendo e, hoje, Fortaleza é uma cidade que tem mais de 15 maracatus.
OP - É possível apontar a loa como o principal elemento de diferenciação do maracatu feito no Ceará?
Gadelha - Uma diferença substancial não existe, mas o que existe é na música. Em Pernambuco, tem dois tipos de maracatu: o de orquestra, também chamado rural (que utiliza instrumentos de sopro), e o de nação, que utiliza uma música chamada baque. Na senzala, os escravos eram nomeados pelas suas nações: sou um tibungo, um iorubá. Daí eles se identificarem como nação do baque virado da etnia tal. Fortaleza utiliza a palavra nação inconscientemente. Não há razão pra se chamar de nação, porque a música é cearense, com ritmo muito mais pro reinado de congo que pro baque virado. Tende pra uma lentidão, um ritmo menos rápido. Como o cearense é diferente de todas as pessoas & somos o país dos ETs (inclusive a nossa cabeça é de ET) &, então até no maracatu existe essa diferença musical. Ele é bem cearense.
OP - De onde surgem essas diferenças musicais?
Gadelha - Talvez o maracatu do Ceará, aqui de Fortaleza, é o que tenha o que nós podemos classificar como a parte mais original do baião que o Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira criaram. Humberto era cunhado do Lauro Maia, que tinha inventado uma espécie de baião chamada balanceio.
O maracatu dessa época já usava esse ritmo, bem gostoso, bem contagiante. Essa alegria perdurou muitos anos. Só que, quando as televisões e as revistas passaram a publicar as fantasias dos bailes de Carnaval do Rio de Janeiro e das escolas de samba, os donos de maracatu, vendo a beleza plástica das fantasias, disseram que nosso maracatu era pobre: era feito com renda do Aquiraz, algodãozinho, chita.
Foi quando os figurinistas entraram para o maracatu. Isidoro Santos, muito habilidoso, passou a projetar fantasias e introduziu no maracatu essas fantasias pesadas, na década de 1960. A renda foi substituída por lamê, veludo, cetins importados, e o maracatu foi descaracterizado culturalmente.
Perdeu na força folclórica, mas ganhou em showbusiness. Aí é que entra a parte melódica. Como é que se podia dançar com fantasias de 30 quilos? A solução foi acabar com o batuque.
Tiraram a coisa frenética e colocaram um ritmo de enterro, de procissão, muito lento, tristonho, pra ninguém dançar. O importante era o maracatu desfilar com fantasias luxuosas. O ritmo foi pras cucuias.
As fantasias eram lindas, mas o espírito do maracatu se perdeu. Deixou-se de dançar. As pessoas que acompanhavam o cortejo como a um trio elétrico & os sujos, que acompanhavam as rezas, as macumbas belíssimas &, subiram as arquibancadas e foram aplaudir as fantasias que passavam lentamente. E isso foi por tanto tempo que as pessoas começaram a achar que era característica do nosso maracatu.
OP - Essa lentidão está deixando de ser predominante na avenida?
Gadelha - Agora parece que os donos de maracatu criaram juízo e voltaram a tocar o ritmo antigo, como é o caso do Axé de Oxossi, Vozes da África, Baobab, Nação Fortaleza e Solar, do Pingo de Fortaleza. Eles estão se preocupando com a melodia, o ritmo, fazendo o maracatu realmente como ele deve ser, um bloco dançante e não uma marcha fúnebre. Essa aparente renovação é, na verdade, uma volta ao passado. É um masoquismo usar as fantasias pesadas, a cara pintada de preto nesse nosso calor. Às vezes é até uma imposição da comunidade, dos jovens, que só querem brincar em maracatu que seja alegre, feliz, que possa dançar e cantar na avenida.
OP - Quando o senhor compõe loas, opta por que estilo?
Gadelha - O maracatu féretro, de enterro, eu não sei fazer. Não é que eu não queira, é porque não sei. Aprendi a parte rítmica e só sei compor esse gênero de maracatu ritmado.
OP - Qual é a função da loa no maracatu?
Gadelha - Nos maracatus, o objetivo da loa é levantar a arquibancada, animar as pessoas e também relatar um fato. A letra fala de alguma situação relacionada àquilo que o maracatu quer apresentar na avenida. Nos mais lentos, a loa é só pra contar história. Não tem preocupação com ritmo, com a estrutura da melodia, não existem acordes. É como se fosse uma reza. Quase que não tem diferenciação de notas, e o objetivo é ser triste. Nós temos dois que seguem esse estilo aqui: o Rei de Paus, o mais triste de todos, e o Az de Ouro.
OP - Para o senhor, quem foi o maior compositor de loas do Ceará?
Gadelha - Dilson Pinheiro sempre compõe, Pingo de Fortaleza, Calé Alencar, mas o maior de todos é o Raimundo Feitosa, o Raimundo Boca Aberta, o fundador do Az de Ouro. Esse foi insuperavelmente o melhor. Negro, sabia muito bem das suas origens, cantava muito bem.
OP - Hoje é mais difícil encontrar macumbeiros negros?
Gadelha - É interessante isso. Um assunto delicado, mas, do ponto de vista sociológico, é importante que alguém estude. O maracatu é uma das peças da consciência negra. Mas por que um negro, quando desfila no maracatu, é obrigado a pintar a cara de preto? O branco pinta porque é branco e precisa ficar preto pro desfile.
Mas o preto pinta a cara de preto porque o branco ao lado dele também pinta. O maracatu de Fortaleza quer apenas teatralizar uma situação de negritude.
É uma agressão muito grande à consciência negra. Mas é uma agressão regulamentada pela prefeitura, que impõe essa regra pro desfile na avenida.
Existem grupos de negros que não participam do maracatu por se sentirem agredidos. Também é muito comum um homem louro de olhos azuis se transformar em uma negra africana. É totalmente artificial quando se fala de raiz. Por isso que o nosso maracatu é tão avacalhado por outras regiões.
É Carnaval, não é maracatu. Por isso que o Pingo (de Fortaleza, do Maracatu Solar), muito lúcido, aboliu a pintura preta preconceituosa e substituiu por uma pintura colorida. O casal de preto velho é um personagem que tem em todos os maracatus, da umbanda, vai sair com o rosto pintado de branco. Eles estão querendo brincar o Carnaval. Sofrer o maracatu não se faz mais.
OP - Mas essa cor toda no rosto não descaracteriza o maracatu, negro?
Gadelha - A cultura negra é muito feliz, o africano é muito feliz, criou a música planetária. O rock´n roll foi criado em cima da música africana. O samba, os passos do futebol são tudo dentro da dança do samba, do maracatu.
Quando a gente volta pra alegria, tá voltando pra nossa negritude, nossa expressão de cantar, de sapatear. Esse conceito da originalidade do maracatu ser triste, funesto, é um erro de 30, 40 anos e só.
O reinado de congos é uma maravilha de dança. Só que foi criada essa pecha no ceará que o maracatu que foi obrigado a ser triste, por causa de uma pessoa que fez um maracatu triste, duro, como se o negro estivesse levando uma surra no pelourinho.
Eu tô com 67 anos. Na minha infância, nós íamos atrás dos maracatus rodando toda a cidade de Fortaleza, da Praça do Ferreira pra Igreja da Sé, passando pela Dom Manuel, e a praça José de Alencar. Eram 10, 12 quilômetros de batuque. A intenção nossa, minha e do Pingo, é de tornar o maracatu como ele é, uma festa de alegria, de participação.
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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A PELEJA DA LEI DO DIABO COM MANÉ VIEIRA E SEU BRAÇO DE FITA

Zeca Zines recebeu o artigo de Antônio Inácio - e publica com louvor por sua arguta observação.

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No dia 14 de janeiro de 2010 foi promulgada a Lei 12.198 que reconhece como profissional as atividades de repentistas, cantadores e violeiros improvisadores, emboladores e cantadores de Coco, poetas repentistas e os contadores e declamadores de “causos” da cultura popular além dos escritores da literatura de cordel.

A inversão de prioridades deste congresso incompetente e corrupto é um dos graves sinais das mazelas que enterram o país no eterno lodo do subdesenvolvimento. Uma infinidade de Projetos de Leis importantes está há anos em tramitação sem que se dê um passo à frente. São temas que vão desde a união civil de pessoas do mesmo sexo até regulamentação de produtos que degradam o meio ambiente passando pelo trabalho escravo.

A atividade dos repentistas e similares estão entre as mais autênticas e expressivas manifestações da cultura popular. O repente vem do chão, de dentro do que mais puro e original existe no Brasil. O repentista, o cordelista, emboladores, etc. não precisam de fiscalização para dar luz à sua obra tão genuína.

O reconhecimento legal destas atividades como profissional, que são espontâneas e passadas de pai para filho, pouco o nada irá acrescentar à vida do artista. Na verdade, entendo que trará mais amarguras que benefícios. Vejamos aqueles de caráter prático: o repentista (e os demais artistas) não possuem vínculo empregatício e se apresentam, via de regra, em locais públicos por sua conta e risco. Se atuarem de forma autônoma, não possuem empregador e, consequentemente, não gozam dos benefícios previstos na legislação trabalhista. Para que possa desfrutar de uma aposentadoria o artista deverá contribuir, como autônomo, para a previdência social federal (INSS).

Por outro lado, se um restaurante ou outro estabelecimento comercial que utiliza a cultura nordestina como tema para o seu negócio, contratar um repentista de forma habitual, terá criado com este vínculo empregatício; não porque o repentista é ou deixa de ser profissional regulamentado e sim porque há uma relação negocial entre contratante e contratado cuja intermediação se dará pela Consolidação das Leis do Trabalho. Da mesma forma o escritor de cordel pode estar amparado pelas leis do direito autoral no caso da publicação de sua obra por uma editora. As três situações não são alteradas com a nova lei.

O fato das referidas atividades serem reconhecidas com “profissionais”, ao meu ver, traz mais problemas do que benefícios. Por que se a atividade foi reconhecida com profissão, o passo seguinte será a sua regulamentação definindo piso de remuneração, jornada de trabalho, registro profissional, etc. E, pior, para regulamentar será necessário criar entidades profissionais de fiscalização da profissão que deverão ser, compulsoriamente, mantidos pelos profissionais da categoria, a exemplo da Ordem dos Músicos do Brasil. Vamos aproveitar e sugerir a criação da Ordem dos Repentistas do Brasil (OEMRABAI), o Conselho Regional de Repentistas do Estado do Piauí (CORREAI) ou mesmo o Conselho Regional de Repentistas e Afins do Estado de Pernambuco(CORRAEBUCO).

A regulamentação da atividade vai piorar muito a vida destes representantes legítimos da cultura popular nordestina que recitam suas poesias em feiras-livres, exposições, teatros, etc. em todo o Brasil, pois agora eles, além de terem de sustentar suas famílias, terão de pagar anuidades aos novos órgãos que vão ser criados sob pena de exercerem ilegalmente a profissão.

Provavelmente os dirigentes destas novas entidades vão ganhar muito dinheiro com o Repente sem saberem o que é uma moda de viola, um martelo, como dançar catira ou mesmo ouvira falar o que Mané Vieira fora fazer no caminho de Santa Rita com um viola no peito e braço que só era fita. Eita, que a estrela Dalva não é mais tão bonita!!!!

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Antonio Inácio