segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Siri-Ará - Filme de Rosemberg Cariry



















“Siri-ará”: um olhar

Assisti com assombro e encantamento o mais novo filme do cineasta cearense Rosemberg Cariry. Não tenho dúvida de que ele é um marco na sua trajetória, porque não se trata apenas de mais uma leitura do significado histórico e cultural deste pedaço de litoral/sertão/além-mar que povoa o seu/nosso imaginário.

Mostra em profundidade e densidade simbólica que o Ceará, mesmo que lute para se esquecer disso, resulta de encontros desencontrados de povos e projetos civilizacionais, envoltos em camadas e camadas de poeira e vento, que ressurgem aqui e ali aos pedaços, feito assombração, picados e repicados em contos, quantas vezes apenas balbuciados.

Mostra em profundidade e densidade simbólica que o Ceará, mesmo que lute para se esquecer disso, resulta de encontros desencontrados de povos e projetos civilizacionais, envoltos em camadas e camadas de poeira e vento, que ressurgem aqui e ali aos pedaços, feito assombração, picados e repicados em contos, quantas vezes apenas balbuciados. Trata-se de uma história de reconstrução e articulação narrativa das mais difíceis.

A ideia de narrar essa leitura do passado por meio do protagonismo implícito no Reisado e Banda de Pífanos, como aquilo que permaneceu mais visível e manifesto até hoje da memória de batalhas entre portugueses e nativos, me parece magnífica porque é isso mesmo que tais ditas “manifestações culturais” representam e dá a elas tanta significação. Um filme de época não falaria tanto!

Pêro Coelho perambula com a sua família e tropa pelo sertanejo Eldorado, tendo como cenário as montanhas de pedra do Quixadá. O cenário é impressionante. Resulta numa paisagem onde cabem perfeitamente devaneios e sonhos, martírios e desejos crus de uns e outros. As falas delirantes e quase separadas dos protagonistas, como se a cada um fosse dado falar a si/de si mesmo, ignorando uns aos outros, em línguas distintas e ideais contrastantes; os ângulos dos rostos, olhares e silêncios dos ditos indígenas, parecem recortados nas próprias pedras, feitos de barro até na cor das roupas, imitando a cor da terra, da areia que anda a tudo cobrir. Há mágoas e ressentimentos, coisas doridas no peito e na lembrança. O horizonte aberto, a amplitude das paisagens alude a um espaço sem fim, a um ponto de chegada apenas imaginário.

Todos sofrem, matam, machucam, se penitenciam e perguntam sobre o sentido da busca dessa felicidade terrena. A índia-menina violentada é a nossa ancestral comum que estaria na raiz dessa dúvida e mal contada história colonial sobre a nossa origem como povo mestiço. O professor de Paris volta para se entender, a índia velha que lhe guia o caminho me parece a representação finamente alegórica dessa memória torturada e silenciada em busca da tal identidade nunca definida, nunca alcançada.

As prostitutas vistas pelo caminho, na viagem inversa ao sentido do relógio, saindo de uma moderna Fortaleza de concreto e seguindo o roteiro de peregrinação ambiciosa do Colonizador, são o sinal da busca eterna do gozo carnal masculino e do ganho/enriquecimento ilícito que custa a vida, a juventude, a beleza delas, cinco séculos vendidas, a troco de umas moedinhas de ouro, que andam a catar, misturadas com ossadas humanas que simbolizam a matança dos antepassados.

A morte está belamente representada, em máscara, vestimenta e diálogos, a discutir filosoficamente o passado e a existência com o professor. A sua aparição traz sempre cenas e reflexões valiosas, difíceis, torturantes. A ironia da fala dela, a sedução que exerce sobre ele, sobre nós, me pareceu um contraponto dessa luta entre presente-passado e presente-futuro. São cenas carregadas de magia e encanto.

No desfecho da narrativa, a cena da cerimônia antropofágica é um ritual impactante, inesperado, uma forma delirante de interpretar o sentido do passado e do que somos culturalmente. Um delírio que resulta de uma pergunta existencial de fim de vida, do professor que aceita a proposta da Morte, por não encontrar resposta que não o turbilhão das imagens mnemônicas e/ou oníricas, que chegam e se esvaem em ritmo histórico e alucinatório.

Nas cenas finais, volta a aparição de Fortaleza. A cidade, vista da Praia Mansa, surge assustadoramente bela e absurda, os prédios estão dispostos em ângulo que os revelam como se brotassem irreais do mar e nos perguntassem se era para isto tanto sangue derramado. Cria-se o nexo entre o litoral e o sertão, o Pêro Coelho e a mulher sem coisa alguma nas mãos, nem riqueza, nem vitória. Cordões cortados, ficam-lhes os filhos mortos pelo sertão. Vivo ficara apenas o menino, o filho da índia violentada. Nas palavras de Cioran, “agora só resta o seu filho bastardo, herdeiro desse império de dor”.

Antes, a cena da flor branca caída das mãos da menina-índia-violentada, mãe de todos nós, o contraste entre ela e o fio vermelho do sangue de sua defloração emociona, faz ver, a quem sabe ler a nossa dolorosa história colonial, a pedra angular desta trágica construção. Feito encarnação do colonizador, mergulha o casal no mar, como sinal da derrota, perdição e tentativa de retorno para o continente ou nada de onde vieram. As coroas do rei e da rainha são apanhadas da areia e postas na cabeça por brincantes a passar pela praia, como se andassem a buscar inspiração para as suas festas de Reisado. Faz-se o nexo entre cultura popular e história colonial.

Ainda não vi tudo. “Siri-ará” é um filme feito em linguagem alegórica, sugere outras leituras e deve ser visto mais vezes. A sua feitura artística apresenta componentes de teatro, dança e artes plásticas. Considero ser este um filme de maturidade. Uma lança fincada bem no coração, o dividindo ao meio. Evoca a lembrança de nossa ancestralidade e faz emergir uma elaboração mais complexa do que somos. Trata-se de um convite à rememoração mesmo que ela doa. Como diz o próprio diretor, está ali uma luta entre “a embriaguez da vida e o descanso da morte, quando concluímos que no lugar de verdades só há imagens alegóricas do que fomos/somos”. Ficam a ressoar no deserto as palavras delirantes de Cioran, a se dizer “o herege, o mestiço, o filho da puta, o ninguém” que “para sobreviver se reinventa”.


MARIA JURACI MAIA CAVALCANTE
Especial para o Caderno 3 - DIÁRIO DO NORDESTE
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Oldenburg, Alemanha, e professora da Universidade Federal do Ceará.
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=594560

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