O capitalismo, ao avançar sobre a arte e tentar transformá-la em mercadoria, tenta assassiná-la. Como expressão da consciência humana, a arte é libertadora; como produto de um processo fetichizado, a mercadoria é alienante. A “industrialização” proposta pelos oligopólios do entretenimento é, na verdade, a antítese da arte.
VALÉRIO BEMFICA
http://www.amar.art.br/opiniao/opiniao_27.html
A morte da arte tornou-se, no século XX, tema de muitos pensadores. Os mais bem intencionados, porém pessimistas, premidos pelo crescimento da indústria cultural, não acreditavam que a humanidade pudesse continuar criando objetos dignos de reflexão estética: eles seriam gradualmente substituídos por produtos industrializados, capazes apenas de expressar sentimentos “prêt-à-porter”, descartáveis, pasteurizados. Anunciavam a morte da arte, mas como lamentação.
Nunca fomos adeptos de tais posições, mas reconhecemos que elas expressam uma tensão real. O capitalismo, ao avançar sobre a arte e tentar transformá-la em mercadoria, tenta assassiná-la. Como expressão da consciência humana, a arte é libertadora; como produto de um processo fetichizado, a mercadoria é alienante.
A “industrialização” proposta pelos oligopólios do entretenimento é, na verdade, a antítese da arte. Mas as premissas das quais partimos são diferentes. Ainda que conscientes do poderio deletério das grandes corporações na área da cultura, sempre consideramos que um dia elas serão derrotadas. A não ser que a barbárie destrua a humanidade, o que consideramos pouco provável, a arte continuará existindo, com seus condicionamentos históricos. E a sociedade do futuro, sem classes nem exploração, será uma sociedade de artistas.
Mas tampouco consideramos tais pensadores como inimigos: estão equivocados em sua visão catastrofista, mas gostariam que a arte continuasse viva. O conforto de suas cátedras talvez tenha embaçado a visão deles sobre a realidade e dificultado a decisão de trabalhar pela derrocada do sistema imperialista, ao invés de apenas observá-lo com horror.
Mas não foram apenas os filósofos que anunciaram o falecimento da arte. Alguns artistas também o fizeram. Em geral aqueles que estavam dentro do campo da indústria cultural, seja no centro ou em sua periferia. A estes nós chamamos de idiotas. Mas vale uma ressalva: empregamos o termo aqui não no sentido atual, mas no arcaico.
Reza a lenda que os antigos gregos, antes das reuniões na ágora onde os grandes temas de interesse coletivo seriam discutidos, cercavam a área da praça com cordas banhadas em betume. A medida visava marcar as túnicas daqueles que fugissem durante as reuniões e trocassem o dever de homens públicos por seus assuntos privados.
Os que andassem com as roupas marcadas pelas ruas da antiga Atenas eram chamados de “idiotes”. Ou seja, aqueles que não se importavam em nada com o coletivo, mas apenas consigo mesmos. Em geral é assim que se comportam tais “artistas”: anunciam a morte da arte não por alguma convicção ideológica, mas em benefício próprio e da indústria cultural.
No campo das artes plásticas é fácil verificar este processo, principalmente entre as vanguardas norte-americanas e européias do século XX, em especial no pós-guerra. Esgrimiam discursos libertários, praguejavam contra as academias e as regras e garantiam que qualquer coisa (de latas de sopa a urinóis) tinha virado arte e, portanto, a arte mesma não existia mais.
O que determinava o valor estético de um objeto deixava de ser aquilo que é expresso pela sua forma e conteúdo. Na prática, o valor estético passou a corresponder ao valor de mercado.
Sendo assim, o “artista” não precisa mais esforçar-se para produzir algo importante para a humanidade, mas sim algo que agrade ao mercado (e renda um dinheirinho).
E, neste sentido, ajudaram o mercado em seu intento de matar a arte, substituindo obras por mercadorias.
Mas não são as artes plásticas a motivação central da nossa reflexão. Elas surgem a partir de algumas matérias publicadas recentemente em um suplemento dito ilustrado de um jornalão paulista, especializado em mostrar o que há de mais podre e carcomido como sendo o último grito da moda.
A primeira delas traz notícias da Suécia, onde alguns selos musicais independentes estão supostamente “importunando as grandes gravadoras”. Nada temos contra o país nórdico, que já deu ao mundo Greta Garbo, Anita Ekberg e a família Bergman. Mas, no campo da música, só conseguimos lembrar do breguíssimo conjunto ABBA.
O que será que os tais selos fizeram para, agindo em um país menor e menos populoso - e com muito menos importância musical - do que a Bahia incomodar tanto as poderosas majors?
Segundo o jornal, descobriram que “a indústria da música morreu” e resolveram dar os CD’s de suas bandas como brinde para quem compra uma camiseta ou um ingresso para um show ou uma festa.
MERCADORIA
De imediato lembramos do filósofo iluminista alemão G. E. Lessing. Certa ocasião teve de responder a alguns críticos que não entendiam o porquê de os escultores que fizeram o grupo escultórico do Laocoonte terem retratado o sacerdote nu, e não vestido, como descrevera Virgílio na Eneida. Responde Lessing: “Um tecido, obra de mãos escravas, tem a mesma beleza que um corpo organizado, obra da eterna sabedoria”?
Podemos parafraseá-lo e perguntar: um pedaço de tecido com uma estampa qualquer, produzido em série por uma máquina, vale a mesma coisa do que uma obra de arte, obra da mais elevada consciência humana?
No entendimento das bandas de garagem suecas, vale mais, pois vendem a camiseta e dão a música de graça! É grande a tentação de afirmar que a música deve ser tão ruim que ninguém se dispõe a pagar por ela.
Pode até ser, mas os supostos artistas logo revelam que a sua posição não é muito diferente dos vanguardistas aos quais nos referíamos antes: “precisamos fazer alguma coisa para conseguir dinheiro de algum lugar, para pagar nossos aluguéis.”, afirmam eles. Ou seja, por trinta dinheiros, vale qualquer coisa, seja vender camisetas, seja vender CD’s: são só produtos, mercadorias, que pagam as contas e, eventualmente, rendem “quinze minutos de fama”.
NEGÓCIO
Se o jornalão só falasse da experiência sueca acreditaríamos que era apenas mais uma das inúmeras bobagens vendidas como novidade em suas páginas. Mas eis que, no dia seguinte, no mesmo jornal, surge outra idéia “brilhante”, desta vez de uma gravadora brasileira que se assume como independente: o download patrocinado. O genial mecanismo também prevê música grátis, em troca da exposição a um patrocinador.
O que vale é o marketing, a obra de arte, mais uma vez, é brinde. Nem uma palavra sobre os reais motivos que levaram o mercado brasileiro do disco cair da 6ª para a 13ª posição mundial, a encolher 75% em dez anos.
Apenas a cômoda conclusão de que não é possível mais ganhar dinheiro vendendo discos e que precisamos vender outra coisa... Para os desavisados pode parecer que estes gênios do capitalismo da nova geração, propondo “novos modelos de negócio”, estejam bombardeando a indústria cultural.
Mas é justamente o contrário. No mundo ideal dos oligopólios do entretenimento, já dissemos, não há arte, apenas mercadorias. No que depender deles a música, o cinema, a pintura, a escultura, enfim, toda e qualquer obra de arte será transformada em “commoditie”, ou seja, em produto estandartizado com preço definido em bolsa de valores.
Nada mais de autores, estilos, originalidade. Apenas bit’s, bites, títulos, conteúdos. Você compra um celular e já ganha 10 MB de música! Assine tal provedor de internet e ganhe 5 “gigas” de filmes. Qualquer bugiganga de camelô tendo como brinde música e imagem...
Longe de combater as majors, estes arremedos de capitalistas agem como a sua vanguarda. Criam o caldo de cultura para o assassínio da arte que os monopólios pretendem cometer. São, neste caso, perfeitos idiotas (no sentido acima): tentam garantir migalhas em detrimento dos interesses mais elevados, não apenas de seus pares, mas de todos os seres humanos.
Mas a humanidade já passou por períodos até mais complicados do que o atual, e a arte sobreviveu. Não seria agora, em um período em que o capitalismo caminha celeremente para a decadência, que ela iria perecer. O fato de a indústria cultural lutar com tanto afinco para acabar com ela é só um sintoma de sua degenerescência, na qual, certamente, arrastará junto os mercadores instalados em sua periferia. O futuro pertence à arte, não à barbárie.
(Valério Bemfica é dirigente da gravadora CPC-UMES)
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