quarta-feira, 31 de dezembro de 2008


Já é 2009 na Austrália.
Feliz Ano Novo para todos.

Para Todos?

Será que podemos comemorar sem pensar um pouco e muito em todos cidadãos do mundo, aqueles que por exemplo estão em países em guerra?

A Terra é Mãe, e acolhe a todos, tanto em sua superfície quanto em sua morada final.

Mas essa coisa de algumas nações pelo poder e força bruta tentarem dominar outras por questões de terrritórios, poder econômico, militar, interêsses politicos e religiosos, parece até que não conhecem o anunciado de uma Lei Básica da Física, de Isaac Newton - Cada Ação Corresponde uma Reação Igual e em Sentido Contrário.

Elke Maravilha, Russa, de Minas Gerais com um pé em Leningrado (atual São Petersburgo) e outro pé no Brasil, foi criada brasileira entre descendentes de africanos, na fazenda Cubango, em Itabira, Minas Gerais, a mesma cidade onde nasceu Carlos Drummond de Andrade.

Elke Grunupp, teve seu pai deportado para Sibéria durante 6 anos por regime totalitário, recebeu seu papai ao chegar em casa com uma martelada na cabeça, após sua fuga dos "Arquipélagos Gulag", e indagando quem é essa pessoa?

Descendente de azerbaijanos, mongóis e vikings, a mãe, Lieselotte Von Sodern, era alemã, nobre que se apaixonou por um plebeu. Seu pai, George Grunupp, insurgiu-se contra o stalinismo e a União Soviética natal, em 1939.

A guerra de ideologias causa distorções absurdas e confusão mental nas gerações posteriores, uma das melhores frases de Elke Maravilha entre as muitas registradas, está numa entrevista concedida ao Jornalista Pedro Alexandre Sanches:

"Meu pai escolheu o Brasil porque para ele era o país das infinitas possibilidades. E é. Chegamos na baía da Guanabara e fomos despejados num campozinho de concentração na Ilha das Flores. Hoje é um quartel", lembra. "Aqui judeu se dá com árabe e vão juntos para a macumba."

Este post encerrando o ano de 2008 (já é 2009 na Austrália), vai para a infinita lucidez de Elke A Maravilha, sua beleza e coragem. E também pensando que podemos fazer uma reflexão, mesmo que por alguns minutos sobre tudo que está acontecendo no mundo, aqui e agora e em todos os países.



Feliz 2009 para Todos.



terça-feira, 30 de dezembro de 2008

F E L I Z 2 0 0 9


Amigos e Amigas que neste ano prestigiaram com suas presenças o Zeca Zines.

Desejo pra vocês tudo de bom mesmo.

Valeu!

Esta foto sobre o Espírito Natalino e Ano Novo, "pesquei" do blog do amigo Piauinauta, achei bastante significativa para nossas reflexões.

Abraços à todos, e até 2009.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Rompendo as Entranhas do Chão

Entrevista com Ednardo realizada por Magno Córdova – Mestrado UnB - Música do Ceará e do Piauí - 2006

Rompendo as entranhas do chão:
Cidade e Identidade de Migrantes do Ceará e do Piauí
na MPB dos Anos 70

Magno Cirqueira Córdova


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Nota:
Zeca Zines, leu a excelente defesa de tese de Magno Córdova, para a UnB (Universidade de Brasília) em sua Pós-Graduação em História Cultural - Agosto de 2006.

O autor está transformando a tese em livro abrangente, de importância fundamental, onde foca nomes e trabalhos poéticos e musicais desta geração, que conquistou o Brasil e Exterior, dentro de contextos e nuances universais, brasileiras e regionais, com especial destaque a Música Popular Brasileira.

É um estudo minucioso e rico de informações, onde as obras artísticas de vários artistas migrantes do Ceará e Piauí se inserem de forma plena na MPB entre eles: Ednardo, Fagner, Belchior, Fausto Nilo, Augusto Pontes, Climério, Clodo, Clésio, e muitos outros nomes de igual importância.

Zeca Zines aplaude com entusiasmo a iniciativa de Magno Córdova e faz votos que este livro esteja disponível no mais breve tempo, a todos que se interessam pelo assunto.

A seguir a entrevista de Ednardo concedida a Magno Córdova.

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MC - Na época em que alguns dos parceiros do Ceará residiram em Brasília, no início da década de 70, vocês continuaram mantendo contatos? A concepção do disco coletivo Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem ocorreu quando todos (você, Rodger e Teti, principalmente) já se encontravam em São Paulo, ou a idéia de um trabalho conjunto, mais orgânico, já havia sido cogitada em Fortaleza?

ED - Quando residíamos em Fortaleza, o tempo de todos era ocupado pelo aspecto de fazer músicas, e letras, teatro, artes plásticas, etc., tudo que estivesse no contexto artístico.
Também tínhamos nossos estudos em faculdades e trabalhos. Naquela época, até talvez, por causa do curto tempo disponível de cada um, não existia na maior parte dos participantes, a preocupação organizacional, projetos, ou cogitar trabalhos futuros.

A vida era, como é, urgente!
Claro que alguns tinham o enfoque de pensar o todo, entre eles, Augusto Pontes, sem dúvidas, tinha esta visão futura, mas o pessoal, embora se reunisse sempre que possível, tinha tanta premência de se expressar em tão exíguo espaço de tempo.
De certa forma sabíamos que, uma parte significativa das pessoas iria desaguar em outros espaços, nossa cidade de Fortaleza, naquele momento era pequena, ou não comportava tanta criatividade, certo é que existia uma inadequação às propostas de todos naquele momento. Não sei se houve projeto arquitetado neste sentido, as necessidades de todos foram se desenvolvendo de forma grupal e individuais sem concepções à priori.

O fato é que no êxodo existem direções em três partes, alguns foram para Brasília, outros para o Rio de Janeiro e outros para São Paulo. E sempre que possível mantínhamos contactos, claro que sem as facilidades de internet e comunicações de hoje em dia. Mas existia esta energia que rolava sempre que era possível uma reunião. Às vezes maravilhosas, outras deixavam a desejar, era um tempo de exceção, ditadura, competição de espaços.

MC - Você se lembra - e pode narrar - a circunstância em que se deu o contato inicial com Climério?

ED - A ponte inicial com o Climério, foi feita pelo parceiro Augusto Pontes em 72, após um show que realizei na UnB – Auditório Dois Candangos, para os estudantes de Brasília, estavam presentes na platéia Augusto Pontes, Yeda Estergilda, Climério e Clodo e uma quantidade muito grande de estudantes e professores, estava tudo lotado, cadeiras, e no chão, tudo apinhado de gente.

Para entrar no palco, já que todos acessos estavam bloqueados pelo excesso de pessoas, tive que subir por uma escada que arranjaram no momento e através de uma janela lateral que ficava a uns dois metros de altura, dar um salto diretamente para o palco, pra delírio da platéia que comentou que foi uma das entradas em cena das mais sensacionais e inusitadas.

No dia seguinte os irmãos Ferreira, convidaram para ir na casa de Dona Alice, matriarca da família. Lembro até hoje seu sorriso luminoso, com voz suave, pautada e amiga. Foi ótimo, tocamos violões, cantamos, tomamos cervejas e principalmente se fez amizade plena que resulta em várias parcerias artísticas.

MC - Como foi que surgiu a idéia e como se deu a sua atuação junto aos irmãos Ferreira no primeiro disco da carreira do trio, o São Piauí?

ED - Na casa de Dona Alice, escutei algumas músicas do Climério, Clodo e Clésio e gostei da sonoridade e letras daquelas músicas. Disse pra eles que quando tivesse oportunidade eu gravaria um disco com eles. Anos depois Climério foi residir em São José dos Campos / São Paulo, em pós-graduação universitária, no INPE, nossos contatos foram mais freqüentes, ele foi diversas vezes à minha casa em São Paulo, e convidava para também ir a São José dos Campos. No Bar do Pedro entre músicas, violões e cervejas, a idéia de nossa parceria foi sendo construída.

Tinha a Frô do Avaré, Flying Banana (Carlão, Bê e Passoca), os shows que fiz em São José. Foi quando em 76 a música Pavão Mysteriozo, foi sucesso no Brasil e exterior e falei pro Climério – “Sabe aquela lance que conversamos em Brasília, acho que agora eu posso sugerir para gravadora, o disco de vocês”.

O Cli tomou um susto e disse que o que eles estavam pensando era eu gravar músicas deles, e eu disse que minha idéia era outra: Eles próprios gravarem suas músicas.
Foi uma noite de justificações do Climério tentando convencer que eles não eram artistas, não tinham voz pra isto, cada um já realizava outro trabalho diferente desta praia, e eu tentando convencer que eles podiam sim, gravar este disco com suas vozes.

Terminamos a noite, eu, o Cli, o Flying Banana, a Frô do Avaré (Evelise), sentados na calçada frente ao Banhado que tem uma vista privilegiada pro Vale de São José dos Campos, era inverno e estava amanhecendo, e no brumado, lá ao longe se via um trem envolto em neblinas, o céu se confundia com a terra e formava no difuso um espaço mágico e eu falei - Olha ali Cli, está vendo aquele trem flutuando nas nuvens, parece um cinema impossível, aquela máquina e seus vagões estão voando aos nossos olhos, vocês podem sonhar um pouco mais, e ver que é possível você e seus irmãos gravarem este disco?

Semanas depois, nos reunimos em São Paulo em quatro dias e noites, gravando no “Tenda Som” – (pequeno estúdio em minha casa) umas vinte e tantas músicas em k7 que levei à direção artística da RCA, (atual BMG), e o Cli falando rapaz isso é somente uns “Pensames”, eles não vão querer.

Foi difícil convencer a direção artística da gravadora, levei-os ao programa da TV Bandeirantes – Mambembe, produzido por Walter Silva, onde também o Pessoal do Ceará se apresentava semanalmente junto a outros participantes, e o Walter os colocou pra cantar, chamei um assistente de direção artística da gravadora para dar uma olhada, pois no dia seguinte os irmãos Ferreira estavam voltando pra suas casas, e na prorrogação, do segundo tempo, minutos finais, recebi o telefonema da gravadora autorizando a gravação do disco São Piauí, fui avisá-los na Rodoviária de São Paulo, que ficava ao lado da Estação da Luz.

Os ensaios e arranjos foram realizados em minha casa durante duas ou três semanas, junto aos músicos de base. O disco entre gravações, mixagens, artes gráficas de capas, em pouco mais que dois meses. E o resto é história, deste disco inaugural da maior importância – São Piauí.

MC - A música "Folia ou Pressa" tem algum significado histórico especial para você, ou a sua "(re) descoberta" se deu mais recentemente?

ED - O disco “Única Pessoa” é formatado com objetivo onde minha ação principal é de intérprete.
Há muito tempo queria realizar disco com esta característica.
Escolhemos temas que se coadunavam e foram feitas seleções de mais de 80 músicas até chegarmos naquele perfil, com obras de autores de várias localizações abrangentes.

Tem autores do Ceará, Piauí, Maranhão, Pará, Rio de Janeiro, Goiânia, Paraíba, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, e além Brasil tem música de autora de Cuba.

Só interpreto músicas de outros quando gosto, e somente quando me dá prazer em cantá-las, então vejo todas estas músicas de forma especial, mas entre umas e outras, não existe um significado de diferença, todas fazem parte do universo, que não necessariamente, representa histórico pessoal complementar, é mais por gostar de cantar, mesmo.

MC - No disco Cauim você gravou "Terezina - 40 Graus". (Eu não conheço o filme Cauim, onde talvez haja algum esclarecimento sobre a pergunta que se segue). Como foi - e é - sua relação com a cidade de Teresina, em particular, e com o território do estado do Piauí, de uma maneira geral?

ED - Tenho proximidade artística e existencial com o Piauí, grandes amigos e amigas, alguns parceiros como Climério, Brandão, realizei produções artísticas como por exemplo na Massafeira que resultou em disco duplo, onde estão Chico Pio, Ana Fonteles, Zezé Fonteles, Jabuti, todos eles do Piauí, produzi o primeiro disco dos irmãos Ferreira, Climério, Clodo e Clésio, é uma lista representativa, que inclue também entre os amigos, Cinéas Santos, Wellington Dias, Jorge Mello, e tantos outros.

Aliás, o Ceará e Piauí, têm historicamente muitos itens em comum e complementar. A Serra da Ibiapaba é uma espécie de “fronteira” permeável. Existe história que antes, o Estado do Piauí, não tinha em seu território parte que dava pro mar e os governos destes Estados trocaram territórios, uma parte do pé de serra da Ibiapaba que era do Piauí, por uma parte do litoral que era do Ceará – que hoje representa aquela faixa de Parnaíba.

Além disto tem o grande fluxo de seus habitantes que se dá em duas vias de mãos, corações e mentes, tanto do Ceará para o Piauí, quando do Piauí para o Ceará. Tanto que tranqüilamente existe este fluxo há muito tempo, onde todos se sentem em sua própria casa.

MC - Você pode me falar a respeito da inclusão de "Rasguei o teu retrato" e "Na asa do vento" ao seu repertório discográfico?

ED - Desde menino, escuto músicas de compositores, autores e intérpretes que antecederam nossa geração, contemporâneos e novos, tanto na área popular quanto clássica, é natural que esta memória afetiva esteja presente eivando vários momentos.

Em meus discos além de ter aberto espaços para inúmeras parcerias, vez por outra reservo alguns espaços para interpretar obras de outros autores, além destas que você cita tais como, Cândido das Neves e João do Vale, Luiz Vieira, Belchior, Fausto Nilo, Petrúcio Maia, Humberto Teixeira, Lauro Maia, Augusto Pontes, Graco, Stélio Valle, entre muitos outros, o que se concretiza mais claramente no disco “Única Pessoa” que gravei em 2000, disco que realizei como intérprete de músicas de Chico Buarque, Milton Nascimento, Fernando Brant, Totonho Villeroy, Bebeto Alves, Nilson Chaves, Jamil Damous, Clésio Ferreira, Augusto Pontes, Maria Tereza Lara, Javier di Mar-y-Abá, Régis Soares, Chico Pio, Neudo Alencar, Rogério Soares, Lauro Maia, Humberto Teixeira, Antonio Cícero, Orlando Moraes, com uma única música minha em parceria com Chico César.

MC - A canção "Serenata pra Brazilha" foi composta à época do lançamento do Imã? É possível você falar sobre esta composição e sobre o lugar ocupado pela cidade de Brasília em sua trajetória?

ED - Serenata pra Brazilha foi realizada durante a gravação do disco Imã, em 79 junto ao disco duplo Massafeira, os três discos foram lançados em 80. Esta música inclusive foi gravada somente com voz e violão, uma espécie de serenata pra uma cidade que talvez não comportasse serenatas, a não ser nas periferias das cidades satélites, mas achei interessante contrapor o fato quase que impossível de se fazer uma serenata no plano piloto e suas asas, mas afeito às preocupações políticas partidárias e funcionalismo público, mas não só isto, como uma espécie de toque de união geral à alma do povo brasileiro, a música foi gravada no disco logo após a composição feita.

Gosto muito de Brasília, a idéia estética de cidade construída, de forma moderna e pensada, no Brasil.
Tem outras cidades construídas desta forma, mas a idéia de conjunto arquitetônico de Brasília é fenomenal nas concepções de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.

Mas não é só isto que me liga a Brasília, meu pai, Professor Oscar Costa Sousa, falava muito de Dom Bosco, de suas profecias, seus métodos de ensino, lia ensinamentos com constância, tanto que fundou em Fortaleza, como professor e diretor, o Ginásio Dom Bosco, no qual exerceu magistério por mais de 50 anos.
Então veio a vontade de conhecer a concretização realizada por Juscelino Kubitscheck, que igualmente lia Dom Bosco.
Juntou-se ao fato que alguns parceiros e companheiros de artes também foram morar nesta capital, e ao chegar pela primeira vez, fiquei extasiado por sua energia, é lindo o cerrado, o planalto central tem de verdade coisas muito especiais, além de ser a concentração do status quo político da nação.

Pois Brasília não é apenas a sede do poder político brasileiro.
Nesta música coloco Brasília com Z, a última letra das incógnitas, como se aprende na álgebra.
Z no alfabeto grego também significa vida.
Tenho muitos amigos em Brasília. Também é um desaguar de habitantes de todas as partes do planeta, é uma “ilha” e um “espaço-porto”, onde aí encontrei também os descendentes dos primeiros desbravadores, chamados “candangos” que ajudaram construir a cidade, e nesta “cosmo-visão” a música já estava pronta e veio num repente.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

A Fidelidade Estética de Ednardo


Entrevista concedida por Ednardo a Revista Bula
Goiânia

17/11/2008 Por
http://www.revistabula.com/materia/a-fidelidade-estetica-de-ednardo/884


“Em meu estoque de propósitos não está disponível vender o que não ofereço, nem existe vaga para compradores de meus sonhos. Acho que caminho à minha própria luz e não está em minhas preocupações obter massificação ao custo da integridade artística ou do que possa aviltar aquilo em que acredito”.


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Quem não se lembra de “Pavão Misteryozo”, “Artigo 26”, “Terral” e “Enquanto Engoma a Calça”? Bastariam essas quatro canções — sucesso de público e crítica — para inscrever o cearense Ednardo entre os grandes músicos da MPB. Ao lado de Belchior, Amelinha e Fagner, ele foi um dos integrantes do Pessoal do Ceará, grupo que, a exemplo dos Novos Baianos de Moraes Moreira & Cia., reabriu o caminho do Nordeste na música popular brasileira, depois do sucesso do tropicalismo de Caetano e Gil.

Natural de Fortaleza, onde nasceu em 1945, José Ednardo Soares Costa Sousa estudou piano e violão na juventude e graduou-se em química pela Universidade Federal do Ceará. Em 1972, gravou seu primeiro disco (um compacto duplo), com a cantora Eliana Pittman. No ano seguinte, juntamente com Rodger e Teti, gravou o disco Pessoal do Ceará, que iria tornar nacionalmente conhecido o movimento que se iniciara no final da década de 60. Radicando-se em São Paulo, com outros integrantes do Pessoal do Ceará, apresentou-se em programas da TV Cultura.

Mas o sucesso veio em 1976, com a música “Pavão Mysteriozo”, trilha sonora da novela Saramandaia, da Rede Globo. A partir daí, Ednardo firmou-se como um dos ícones da nova música nordestina, que tomou conta das rádios do país na primeira metade da década de 80, até que o rock nacional e, depois, a música sertaneja e o axé, viessem a expulsá-la da mídia. Ednardo, como outros grandes músicos brasileiros, deixou de tocar no rádio. Mas sua música indelével manteve o público fiel. Não só no Brasil, mas também na Europa, na Ásia, nas Américas.

Com 32 anos de carreira em disco e mais de 250 músicas gravadas, Ednardo manteve-se fiel a uma proposta estética que prima pela qualidade, fundindo o regional e o urbano, a sofisticação e a singeleza. Em 2002, ele juntou-se a Belchior e Amelinha para reviver o Pessoal do Ceará, num disco que leva esse nome. O CD traz os clássicos do grupo e duas canções inéditas, entre elas a bela “Mote, Tom e Radar”, do próprio Ednardo. Antes, em 2000, ele lançou o disco Única Pessoa, em que mostra o seu lado de intérprete.

A revista eletrônica Bula, por intermédio de seus editores, conversaram com Ednardo. O resultado da conversa, via correio eletrônico, revela não apenas o grande compositor e intérprete da MPB, mas o artista consciente das mazelas da indústria cultural. Nesta entrevista, Ednardo explica qual o verdadeiro significado do Pessoal do Ceará, critica o jabá que impera nas emissoras de rádio e não poupa o conterrâneo Fagner. E mostra que sua arte continua mais viva do que nunca, encantando o país à revelia da mídia.

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Carlos Willian — Onde você nasceu?

Ednardo - Em Fortaleza, em uma casa à Rua Senador Pompeu. Os cearenses brincam, dizendo que é a rua mais extensa do mundo: inicia na beira da praia, atravessa em linha reta toda a cidade, transforma-se em estrada, vai pelo interior do Ceará, em direção a todo o Brasil.

Carlos Willian — Há artista injustiçado?

Ednardo - Não; sim; talvez. Quem saberá o que é isto que trafega entre a bruta força dos meios, onde os artistas navegam com sutilezas? Grandes gravadoras e a mass mídia, com raras e honrosas exceções, têm tratado o assunto música brasileira, com distanciamento, desconhecimento e outros interesses prejudiciais às nossas diversidades e riqueza musical, rítmica, poética e estética.
Não é difícil perceber. Escutem rádios, vejam tevês, saibam como se escolhem prioridades de lançamentos de discos, patrocínios, projetos artísticos, quais espaços e horários de programações.
Àquilo a que grande parte da massa tem acesso está muito aquém da importância e popularidade das artes e músicas realizadas pelos artistas brasileiros. É só viajar por esse país para se perceber isso. A sensibilidade aflora, o povo brasileiro é sofisticado em sua cultura popular e exige ser tratado com respeito, e requer ter acesso ao reflexo de seu verdadeiro espelho, em todas as cores e estéticas.
O país é gigantesco, seu povo maior ainda. Sabemos que a grande indústria cultural, aquela que comanda espaço e tempo na mídia, tem objetivos diferentes da indústria cultural nacional que enfrenta sérias dificuldades para o seu crescimento. A consciência quanto à atenção aos produtos audiovisuais, livros, teatro, cinema etc., valorizando seu povo, costumes e identidade, que são de importâncias fundamentais para se construir uma nação, fica em segundo plano.

O brasileiro, nos tempos atuais, tem poucas opções e passa a consumir o que for filtrado e decidido por terceiros e seus representantes, empurrado entre campanhas publicitárias, marketing e canhões da mídia. A afirmação não é individualista, nem xenófoba. A manipulação instituída pelo jabá pode ser chamada de crime irresponsável e indistinto, e estão fazendo isto com nosso povo, e seus artistas — antenas da raça — como fala Ezra Pound. Adjetivar no sentido singular é tentar desviar o foco da verdadeira questão.

Carlos Willian — Zeca Baleiro afirmou que você o influenciou. E quanto a você, quais foram as suas influências?

Ednardo - Li matérias de vários artistas com essa afirmativa. Penso que são influências naturais e iniciais de admiração, respeito e aprendizado para depois decolar livre. Claro que também tive mestres, aprendendo bastante com todos.
Ao começar a fazer música, estudava piano clássico e popular, entre os cinco e quatorze anos. Freqüentava auditórios de programas de rádios que apresentavam cantores e orquestras de fama nacional ao vivo, ao mesmo tempo escutava o que as rádios de Fortaleza, Rio de Janeiro e vários países ofereciam aos ouvintes.
Tínhamos um rádio valvulado com ondas médias, curtas e tropicais, onde todas as correntes musicais coexistiam fartamente difundidas e uma discoteca ampla que eu tratava com carinho desde os discos de cera dos meus pais aos long-plays que passei a adquirir com freqüência.
Tanto em Fortaleza quanto em viagens aos litorais e interior do Ceará mais distantes, ia aos espaços públicos de carnavais e feiras livres, para ver e escutar maracatus, violeiros repentistas e sanfoneiros, bumba-boi, congados, frevos, forrós, cocos, emboladas e sambas, descobrindo músicas, ritmos afro-brasileiros e indígenas e suas vertentes culturais.
Entre os 15 e 25 anos, meu instrumento mais constante foi o violão, tanto na vertente dos movimentos musicais que vinham de fora, rock, blues e jazz, quanto na vertente brasileira, baião, bossa nova, samba, choro, além da vertente latina, bolero, rumba. As músicas de protesto contra guerras e ditaduras, chegaram ao nosso conhecimento, e percebemos o que acontecia na América Latina com regimes políticos autoritários e totalitários que alguns tentaram combater pelas armas e outros pelas artes.

Também acontecia o pessoal da Bahia, São Paulo, Rio, Minas, Recife, Paraíba, Piauí, e de muitas outras regiões do país. Fui abençoado por todas estas vertentes que eivaram meu espírito e criatividade. É uma lista enorme de influências, acho que dá para ter uma idéia. Agradeço aos sábios mestres terem me proporcionado este universo. Os melhores ensinamentos que o conjunto das influências proporcionaram foi, sem dúvida, ter mente, sensibilidade e consciência, voz e conteúdo para cantar e ouvidos abertos e atentos, com plenitude de emoções e compreensão do que somos.

Carlos Willian — Alguns críticos dizem que você ficou à sombra de Fagner, mesmo sendo um artista mais completo do que ele. Em sua opinião, por que você não alcançou a mesma projeção?

Ednardo - Do ponto de vista artístico, a abordagem é inusitada e desconheço comentário neste sentido. Quem possui visão abalizada e isenta e conhece nossos trabalhos artísticos, não se refere desse modo ao que tenho realizado nestes 32 anos de música. Somos diferentes e distantes o suficiente, o que impossibilita essas colocações. O fato de sermos conterrâneos, de uma mesma geração criativa, não induz comparações de nossas obras, de nossos projetos artísticos e existenciais. Não se trata de valoração pessoal, é uma constatação, sem equívoco.

Em meu estoque de propósitos não está disponível vender o que não ofereço, nem existe vaga para compradores de meus sonhos. Acho que caminho à minha própria luz e não está em minhas preocupações obter massificação ao custo da integridade artística ou do que possa aviltar aquilo em que acredito. Está implícito e explícito em minha obra e posição existencial. Porque querer essa tal de “mesma projeção” onde alguns para alcançá-la vendem a alma?

Antônio Carlos dos Santos — Por que não se escuta mais Ednardo nas rádios?

Ednardo - Não se escuta mais, com tanta freqüência, grande e impressionante quantidade de artistas brasileiros. É esclarecedor se programadores destes meios e seus departamentos comerciais respondessem à pergunta de forma clara e verdadeira.
São eles que são comandados na “escolha” e oferecem ao público o que escutamos e vemos e deixam grande parte do que representa a música brasileira fora da lista do que é difundido.
Foi o que mostrou criteriosa pesquisa realizada pelo jornalista Sérgio Rubens Torres e publicada no jornal Hora do Povo, de São Paulo. Recomendo a leitura desta matéria, que pode ser encontrada na Internet www.horadopovo.com.br/2004/julho/16-07-04/pag8a.htm

O Jabá! Prática famigerada das gravadoras que estabeleceu a censura econômica junto com a conivência e interesses de alguns meios de comunicação e massificação. Junto ao pagamento, enviam a lista de poucos artistas e tendências musicais de seus casts aos controladores do mass media. As trinta moedas da traição à música brasileira têm forma sutil, sem rastros visíveis dos “serviços prestados” por corrompidos aos corruptores.
Outras terríveis formas de convencimento são as demissões sumárias daqueles que ousam divulgar o que não está na lista ou quando expressam suas opiniões. E isto não é só na área da música.

Talvez alguns executivos de gravadoras atualmente se arrependam de ter criado o monstro que anualmente custa aos seus departamentos, 95 milhões de reais e tende a crescer, pois a fome dos que atendem ao controle é insaciável.

Deixo bem claro, que seria injusto generalizar, pois alguns meios de comunicação, cada vez mais raros, demonstram em planilhas do Ecad que, em várias cidades e emissoras, continuam sendo difundidos, para grande número de ouvintes, muitos artistas brasileiros sem que seja necessário pagar para tocar. São emissoras que dignamente entendem o que significa concessões públicas, além de propósitos comerciais, e sabem que música é música e comercial é comercial e que sem cultura própria tudo fica nas mãos de outros, incluindo a opção de escolha individual ou coletiva.

Antônio Carlos dos Santos - Você é um tipo raro de artista que, mesmo estando fora da mídia, tem um público cativo. Por quê?

Ednardo - Tipos raros de artistas existem em vários segmentos da música brasileira. Mídia é o conjunto de meios de comunicações, veículos, recursos, técnicas, suporte, tecnologias de gravação e registro de informações, jornal, livro, rádio, televisão, cinema, audiovisuais, discos, DVD, vídeo, internet, show, divulgação, etc. Quanto ao público que prestigia meus shows e discos, é bem mais amplo.

Tenho, atualmente, mais de 350 obras e gravações registradas em discos originais e compilações, trilhas de cinema e teatro, especiais de televisão. Isso resulta, em média de registros, mais de 12 músicas por ano ao longo de 32 anos. Realizo shows pelo Brasil que geram matérias em jornais, rádios, tevês, em espaços significativos. Os produtores de shows constatam a receptividade da platéia em eventos de médio e grande portes.
Então, não estou tão fora da mídia assim. Na mídia limpa, sem forçar a barra, estou presente. Nenhum artista resistiria tanto tempo sem a mesma. Essa constatação é compartilhada por muitos e em grande escala nestas viagens pelo Brasil.

Acho que não cabe a mim, explicar, esse fato, o que sei é que, desde os primeiros discos, é visível a aceitação popular. Penso que não me distanciei do depositário da cultura popular do qual recebo e ao qual devolvo. Assim demonstram sucessos de várias músicas.
Reservo espaço onde outras pessoas interagem com seus próprios sonhos e realidades, formam imagens exclusivas em novas combinações das histórias do cotidiano, reportagem do que penso que merece ser musicado, pontes entre minha percepção e personas que habitam o coletivo existencial de cada um de nós.
Algumas são aceitas de imediato pelo povo, outras passam pelo tempo necessário à percepção geral.
Especialistas musicais e culturais atestam que existe alquimia sonora e de palavras que, juntamente com a minha posição existencial, artística, formam conjunturas de credibilidade em diferentes abordagens válidas e atuais em várias faixas etárias e segmentos sociais. Estou no meu lugar e a realidade também pertence a todos.

Antônio Carlos dos Santos — Como é o seu contato com o Pessoal do Ceará? Ficou mágoa de algum deles?

Ednardo - Sempre que nos encontramos existem momentos gratificantes. Conversamos sobre arte, vida, cultura, lances normais do cotidiano. Alguns projetos se concretizam, outros são adiados. Nesse ano, realizamos shows, para um grande público, no Festival de Inverno de Petrópolis e Friburgo, no Rio de Janeiro — Ednardo, Amelinha e Belchior, que gerou nosso disco lançado na Warner em 2002. O show de Fortaleza, em 2001 (Ednardo, Belchior e Fagner), não gerou disco, embora com um público de 100 mil pessoas. Outro encontro foi o show gravado pela TV Globo, no Som Brasil (Ednardo, Amelinha, Belchior), com público idêntico, mas também sem disco.

Mas tem a Massafeira 1979 com mais de trezentos artistas de diversas áreas e gerações criativas que resultou no disco duplo Massafeira (CBS, Sony, 1980), que é um capítulo especial do Pessoal do Ceará.
E ainda o Balanço da Massa (Fortaleza, 1995), junto com artistas da nova geração.

É preciso entender que Pessoal do Ceará é bem maior que o grupo que a mídia costumou citar. Quem tem o primeiro disco Pessoal do Ceará (Ednardo, Teti, Rodger Rogério), lançado pela Continental em 1972, um vinil capa dupla, sabe da diversidade e valor de muitos nomes citados na capa interna e também da diversa significação artística nos segmentos de música, poesia, literatura, artes plásticas, teatro e outras formas de expressão.
Como em todo grupo, principalmente de pessoas ligadas ao fazer artístico e cultural de qualquer lugar, existem naturais competições de egos e defesas de ponto de vista estéticos devido à diversidade de propostas, que são resolvidas com inteligência, amizade, civilidade e bom humor. Dificilmente perduram mágoas ou qualquer coisa desse tipo, a não ser se houver falta de ética, mas aí já é outra coisa.

Antônio Carlos dos Santos — Quais são as novas revelações da música brasileira?

Ednardo - A cada geração que se renova, conhecemos valorosos autores e intérpretes. É vital que cada geração artística reconheça a importância daqueles que a antecedem e seja generosa com aqueles que chegam na continuidade evolutiva da música brasileira.
Também temos a realidade absurda que embota e apaga o que é significante dos registros e memórias brasileiras.
Às vezes, para falar do presente, é necessário dar uma volta no passado para termos saudades do futuro.
Desenvolvemos projetos neste sentido: Nosso primeiro disco já tinha esta característica de entender individualidades criativas dentro de processos grupais. Também lançamos o primeiro disco dos piauienses Climério, Clodo e Clésio, livro de poesias do Brandão, primeiras músicas dos cearenses Petrúcio Maia, Fausto Nilo, Augusto Pontes, Fagner, Ricardo Bezerra, os movimentos da Massafeira Livre e Balanço da Massa.

Especialmente a Massafeira uma das mais ousadas e seminais iniciativas de mostrar ao país o que acontecia em termos de arte contemporânea espontânea e enraizada no final dos 70 para o início dos 80. Grande feira cultural feita por nós artistas, sem nenhuma injunção exterior, juntou música, artes plásticas, literatura, teatro, dança, cinema, artesanato e culinária sem nenhuma espécie de filtragens, com artistas de várias regiões, mais de 300, reunidos no Theatro José de Alencar, em Fortaleza, em março de 1979.
Depois, outros tantos na gravação do disco duplo no Rio de Janeiro. E, em seguida, para lançar o disco duplo no Theatro José de Alencar, em outubro de 1980. Mas muito pouco se falou no Brasil da importância da Massafeira.

Desde os meus primeiros discos coabitam várias gerações. A constante vem aos mais recentes discos, como Única Pessoa, que tem autores de várias regiões: Rio de Janeiro, Ceará, Piauí, Goiás, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pará, Maranhão, Paraíba.

Acompanho a cena musical brasileira sempre que possível. Percebo que de todos lugares despontam pessoas que se somam aos que já têm estrada. A quantidade e qualidade de discos nas áreas alternativas e independentes, e alguns poucos de forma bem mais rara nas majors, tem seu devido reconhecimento. Muitos dos bons, estão lutando por seus espaços e colhendo frutos, mesmo que o terreno atual esteja difícil de plantar.

Mas é delicado nominar artista ou grupo, no estágio inicial do que chamam “os novos”. Citar alguns, é possível esquecer outros também importantes, e não quero para mim a função de ficar indicando ou descobrindo novos talentos de maneira paternalista, parecendo que não tenho assunto próprio para colocar em pauta.
Mas continuo a ter olhos e ouvidos atentos para o que acontece com a mesma capacidade de abraçar e dizer: sejam bem-vindos.

Carlos Willian — Quem é o maior compositor brasileiro: Chico ou Tom?

Ednardo - Justamente pela compreensão do gigantesco universo da música brasileira, seria adequado fazer uma lista bem maior, lógico que também incluindo estes bem-citados artistas e muitos, muitos outros. Seria indelicado escolher “o maior” entre todos. A música brasileira não é somente aquela feita em determinada região, ou por compositores de correntes musicais ou gerações criativas, ou ao que é visível na atualidade. É muito mais do que isso.

Carlos Willian — A letra da música “Ima” aparece em alguns livros de literatura. Em sua opinião, letra de música é poesia?

Ednardo - Além desta, outras têm sido usadas em livros de literatura, compilações de poesia, crônicas e até em livros didáticos. Partindo do princípio de que poesia pode ser musicada, em contrapartida, muitas letras de música, quando realizadas com critério, também existem como poesia, independentemente da música. É um fato que se observa com freqüência desde os antigos bardos e trovadores até as obras lítero-musicais atuais no Brasil e no exterior.
A música brasileira está plena desses exemplos. Não pretendo enquadrar o que escrevo para minhas músicas nessas categorias de poetas ou letristas. É outra forma de juntar sensações que se completam pela música.

Carlos Willian — A música “Lagoa de Aluá” foi feita para alguém em especial?

Ednardo - A letra desta canção é do parceiro Climério. Fiz a música com outro parceiro, o Vicente Lopes.
Climério foi passar férias em Fortaleza, e nosso parceiro Dominguinhos também estava por lá. Apostamos para ver quem faria mais músicas e letras durante 30 dias. Muitas são desta fornada: “Enquanto Engoma a Calça”, “Lagoa de Aluá”, “Brincando é que se Aprende”, “Flora” e outras ainda inéditas.
Climério é um dos grandes letristas e poetas atuais. Pouco conhecido do público, suas letras fazem parte de vários sucessos na música brasileira. Tive a honra de produzir seu primeiro disco, em que também estão seus irmãos Clodo e Clésio. O disco chama-se São Piauí.
Professor e mestre de comunicação da UNB, Climério tem vários livros de poesias. É um mestre das artes.

Antônio Carlos dos Santos — Qual a sua opinião sobre a ditadura musical da atualidade?

Ednardo - Revisitando o passado não tão distante, durante a ditadura militar, a indústria fonográfica atual foi implantada por empresas multinacionais e obteve regalias bastante significativas, tais como isenção de impostos e outras benesses governamentais.
Com o poder destas corporações, as gravadoras nacionais foram sendo aniquiladas ou compradas.
No período da distensão, veio a farra de distribuição de concessões de emissoras de rádio e TV, como moeda de troca para aprovações de projetos governamentais.
Formaram-se monopólios e oligopólios, entre parlamentares do Congresso, amigos de políticos, fortes grupos econômicos que começaram a disputar o jabá das gravadoras e foi virando uma bola de neve.
A música começou a ser entendida nesta espécie de negociação como comercial ou jingle, os espaços foram leiloados para quem der mais.
A nivelação pela disponibilidade de pagar misturou o trigo e o joio e foi instituída a ditadura econômica, que é resultado destes e outros tipos de realidades extremamente prejudiciais à música brasileira.

Antônio Carlos dos Santos — Você acredita ser viável o caminho percorrido pelo cantor Lobão, de buscar uma alternativa para a onipresença das gravadoras?

Ednardo - Muitos dos mais importantes artistas brasileiros e os que iniciam carreira atualmente, cada vez mais, procuram viabilizar caminhos próprios de forma a não ficar reféns deste absurdo tipo de censura.
Formam seus próprios selos de gravação, editoras e gravadoras individuais ou procuram gravadoras independentes e alternativas para escoar com maior liberdade suas obras.

Esse caminho ainda enfrenta problemas de percurso na distribuição, divulgação e, principalmente, na perspectiva que meios de comunicação de massa sejam realmente democráticos.
Por sua vez, os artistas devem se informar melhor e manter união em busca dos melhores objetivos gerais que atendam as partes.
É essencial que o governo brasileiro, Ministério da Cultura, políticos, estejam juntos aos artistas brasileiros. Aliás, todos estão nesses cargos porque ali foram colocados pelo povo brasileiro. Eles precisam perceber o que está acontecendo e tomar providências. A demora pode ser interpretada como se houvesse outros interesses atrapalhando.
Tramita no Congresso projeto de lei que criminaliza o jabá. Ele é altamente danoso a todos. É, na verdade, dumping e concorrência desleal e ilegal.
Deve ser combatido pelo governo de qualquer país. É contraproducente aos esforços de brasilidade na área de produção artística musical, uma das maiores do mundo em sua capacidade criativa.

Carlos Willian — Como é sua relação com a Internet?

Ednardo - A Internet é evento maravilhoso, uma das grandes descobertas da humanidade. Possibilita movimentação de informações atuais em velocidade e democracia nunca antes imaginadas. Compreendida por muitos como marco da civilização mundial, tão importante como a invenção da roda, do rádio, do avião, dá um salto quântico para a locomoção e comunicação virtual.

Como é utilizada é outra história. Muitos que mergulharam nos livros de George Orwell, de Isaac Asimov e outros autores são partidários da idéia que ficção e realidade têm proximidade preocupante: o controle geral do big brother, o longo porrete da persuasão que tudo vê e administra, as leis da robótica descumpridas.
É comum falar de hackers do bem e do mal. Entre programas, programações de sistemas, cookies, vírus, antivírus, firewall, e-mails, sistemas de telefonia fixas, celulares, satélites etc., nada disso deixa dúvidas que tudo é xeretado, acompanhado e às vezes conduzido à sua revelia por outros.
Filmes e livros de ficção assustadores antecipam o que virá ou constatam o que já é feito, e esta tecnologia de ponta é domínio de poucos. Qualquer pessoa ao entrar na rede já está dando informações e recebendo recados da humanidade, resta saber de quem e para quem. De minha parte sou entusiasta e uso com comedimento.

Carlos Willian — Quais livros fizeram ou estão fazendo sua cabeça?

Ednardo - Tenho acesso a muitos livros desde quando menino. Cultivo o hábito de leitura ao longo de minha adolescência. Escolher especificamente alguns livros-cabeça fica difícil. Livros de cabeceira seria relativamente mais fácil porque estou ao lado de minha estante com muitos nas prateleiras, não tem todos que quero, mas também é impossível ler tudo.
Leio da forma que me apraz, às vezes do início ao fim, incluindo as orelhas. Outras, folheando páginas ao sabor de abrilas aleatoriamente, e outras leio das últimas páginas para as primeiras, e tem aqueles que tenho, e ainda não li, aguardo vontade. É essencial ter bons livros, discos, revistas, publicações; ver bons filmes, sobre diversos assuntos, diversas vertentes.

O material imaterial dos pensamentos humanos registrados nestes formatos, tudo o que for digno do interesse de cada um. Existe muito que se ver, bulir, nesses ícones da sabedoria. O que significa tocá-los, comover-se, sensibilizar a si próprio com os conhecimentos adquiridos, concordar, discordar, mudar de posição, ficar na mesma, se possível.

Carlos Willian — A música pop é descartável?

Ednardo - O que é descartável é a baixa qualidade musical de qualquer onda pré-fabricada e modismos que passam. O que é consistente continua e fica.
Além do mais, pop não necessariamente é sigla de popular, como pensam muitos. Dizem que a expressão pop usada na indústria se origina de “Point of Payment” — é quando o investimento em determinado produto atinge o ponto de equilíbrio entre o que foi gasto na produção, fabricação, difusão e distribuição, e passa gerar lucros por sua venda.

Na música, essa tendência chegou do exterior a reboque de grupos que fazem do fácil consumo e assimilação geralmente pobres de músicas e letras seu principal lema. Utilizam “investimento” de jabá e outros efeitos mirabolantes, coreografias aeróbicas e sensuais pra uma parcela da moçada cheia de hormônios gastarem suas energias e dinheiro.

É diretriz de executivos em alguns países que passaram a inventar, produzir e contratar shows de grupos e subgrupos nesta formatação. Em Pindorama se plantando, tudo cresce e floresce. Quanto mais baixo o nível pop, mais pipocam de todos os lados pop-rock, pop-samba, pop-mpb, pop-sertanejo, pop-forró, pop-axé, pop-romântico, pop-rebelde. Alguns detestam e combatem a vertente que é aceita pelos menos exigentes. Acredito no poder da deglutição, transformação e devolução de outra forma mais criativa e plena que inúmeras vezes a música brasileira demonstra ter.

Antônio Carlos dos Santos — Quais são os caminhos para a música regional brasileira?

Ednardo - Todo tipo de classificação, reduz e apequena. Na música é maneira de compartimentar, segmentar e controlar. Indicar caminhos seria ainda mais complicado. Abstraindo a questão, estão abertos todos caminhos possíveis e imagináveis ao que se inventar. Como música regional, entendo aquilo que é feito por artistas de uma região ou local. Para tornar o regional em amplitude universal, existem fatores, entre os quais a importância e densidade do centro emissor, maestria e qualidade das músicas e letras ou poesias, o carisma de artistas e grupos e, principalmente, a junção desses itens abrangentes nas propostas junto à identificação pública, descobrindo-se os meios que realizem estes objetivos.

Toda e qualquer música tem seu berço em regiões, cidades, bairros, zonas. Nenhuma nasce universal. No Brasil, foi e é assim com o samba, choro, bossa nova, tropicália e tantos outros movimentos e tendências da música feita por brilhantes artistas residentes em qualquer lugar deste imenso país. O que torna mais amplo é a junção dos ingredientes que emulam o povo brasileiro a entender esse liquidificador cultural e estético, a aceitá-lo como sua mais completa tradução naquele instante.

Cada região do Brasil é plural e tem características próprias. Unificadas pela língua, mas com códigos próprios e características culturais longe da hegemonia que aniquilaria nossas ricas diferenças. Ao cultivarmos a pluralidade cultural, musical, religiosa, política, costumes, junto com nossa miscigenação racial, marcamos um ponto gigantesco a nosso favor, mas, em paralelo comparativo, se não cuidarmos bem deste dom natural, seremos fatiados como no modelo das capitanias hereditárias entre feudos, quilombos e arraiais, em pequenas repúblicas das bananas e outras lavouras arcaicas.

Chegando ao Pessoal do Ceará e à nossa geração criativa, inicialmente atuamos nas cenas de nossos locais, estávamos sabendo e sentindo na pele os fatos, tínhamos conhecimento do que era oferecido e também querendo oferecer algo para interagir, participar e atuar de forma ampla na música brasileira. Esta realidade, era a mesma em outras regiões. Saímos daqui, dali, de todo lugar, em meados dos anos 60, e chegamos à caixa de ressonância do Sudeste, levando à cena brasileira nossas músicas.
Nos anos 70, fomos abrindo espaços para outras estéticas de ver e sentir. De várias regiões que chegávamos nos identificaram, junto aos nossos nomes, os locais de origem: “do Ceará, “de Belém, “Mato-grosso, “de Recife, “da Vila, “Baianos, “da Paraíba, “da Mangueira, “do Estácio, “do Piauí, “de Pernambuco, “da Fronteira...
Até hoje não se sabe se forma simpática de entender o Brasil do tamanho que é, ou disfarçada forma de segregação. Era comum referirem-se à nossa música como “invasão nordestina”. Outros a classificaram como regionais.
No entanto, são músicas e letras/poesias que tocam pessoas de todo o país e exterior — sem sombra de dúvida, brasileiras. São centenas de artistas de várias regiões que responderam ao chamado do povo brasileiro. Enfrentamos o exílio em nossa própria terra, lutamos pela volta dos banidos, construímos, com vigor, páginas plenas da música brasileira que o povo não esquece. Até hoje não são justos com os artistas desta geração, os estudos e reconhecimento de nossas obras em termos coletivos e individuais.
Saltam por cima sem cerimônia, como se fosse período insignificante de conteúdo. Como se aquele tempo tão negro da história política brasileira tivesse fechado olhos de estudiosos e críticos à intensidade de luz que emitimos e que servem de faróis até hoje.

Antônio Carlos dos Santos — O que as gravadoras buscam num artista?

Ednardo - É necessário entender diferenças entre diversos tipos de gravadoras existentes no Brasil. As maiores empresas da indústria fonográfica no Brasil, atualmente em número de quatro mega corporações, controlam quase 90 por cento do mercado do disco e execução pública.
Têm matrizes no exterior e suas atividades não se limitam ao meio musical. Como qualquer empresa desse tipo, buscam lucro, prestígio da marca, competição de mercado, remessas de lucros e cuidam de suas ações nas bolsas mundiais.

Empresas de capitais mistos, representadas, interligadas, meios de comunicação, grupos empresariais, religiosos, são dezenas e têm 7 por cento do mercado do disco e execução pública. Matrizes no Brasil e outras não se sabem.

Gravadoras nacionais, selos individuais e artistas independentes são centenas e têm 3 por cento do mercado do disco e execução pública. Com matrizes no Brasil, seus proprietários são geralmente pessoas da área artística, ou interligada diretamente à produção empresarial artística.

O artista é o lado mais sutil da engrenagem, oferece suas obras, interpretações e idéias, sem as quais nenhuma gravadora existiria. Quando é aceito, faz e, ao mesmo tempo, não faz parte das gravadoras, não é empregado nem executivo, seu contrato é temporário por obras gravadas ou anualmente dependendo da vontade dos contratantes e resultados de vendas. A não ser no caso específico do artista ser dono de sua própria gravadora, editora e voz.
Paradoxalmente, somos a parte mais importante e dispensável do sistema. Não é preciso grandes exercícios para se entender esta vulnerabilidade e o que as gravadoras buscam em cada caso.
Neste universo coexistem interesses diferentes. O artista pode ser manipulado em sua vontade, servindo de marionete, ou respeitado como mestre em sua arte.

Carlos Willian — Você fica incomodado com o fato de ter ficado marcado por uma música que foi tema de novela?

Ednardo - Não tenho este preconceito. Por que algum artista ficaria incomodado em ter uma de suas músicas utilizadas em tema de novela?
A utilização foi digna e escolhida por mestres como Walter Avancini e Dias Gomes. Nos dias de hoje, gravadoras e artistas se debateriam ou pagariam para estar presentes naquela obra audiovisual, mas, naquele momento, foi espontâneo e serviu para o grande público ter conhecimento do restante das músicas dos três primeiros discos que eu havia gravado anteriormente.
Em meu acervo autoral constam mais de 600 músicas entre gravadas e inéditas, todas me marcam e minha marca está em todas. Não no sentido de incômodo. Eu mesmo as fiz e seria absurdo não considerar todos os frutos bem-vindos. Além do mais, a música “Pavão Mysteriozo”, realizada e gravada 1973 no disco O Romance do Pavão Mysteriozo é um link entre a literatura de cordel, o ritmo afro-brasileiro do maracatu e a música urbana.

Atualmente, foi utilizada em mais de 30 regravações no Brasil e no exterior, além de ter sido tema principal do excelente folhetim popular Saramandaia, de 1976. Foi também tema indígena em ritual sagrado no Xingu e é considerado hino pelos Blocos de Maracatus do Ceará. Tem versões para outras línguas e foi utilizada pelo pessoal do GLS em desfile para 1 milhão e 100 mil pessoas em São Paulo.

Cantadores e repentistas do Nordeste também a perpetuam no universo popular. O Ballet Stagium, um dos mais respeitados no mundo, a colocou em seu repertório de apresentações. Em qualquer lugar do Brasil todos cantam, em diversas faixas etárias e segmentos sociais, mostrando que a importância da música vai além de suas utilizações.

Carlos Willian — Na sua opinião, Fagner se vendeu?

Ednardo - Além da polarização complexa da pergunta, deixo claro que não costumo opinar sobre direcionamento de cada um à sua arte.
Mas, é conhecido que Fagner criou espécie de persona com a qual conseguiu ser aceito no meio artístico, estribado em seu talento e atritos com gravadoras, artistas de destaque na cena musical brasileira.
Ter diferenças com modus operandi de gravadoras é considerado normal no Brasil, mas desentender-se constantemente com colegas e companheiros artísticos é estranho.
Se a estratégia deu certo durante algum tempo, ao se colocar em pauta na mídia abusando do clichê, o tornou refém da caricatura de si próprio e cansou o público.
Quando ocupou cargo executivo na CBS, ele se auto-instituiu gerente da música de artistas nordestinos ao seu critério pessoal. Tentou fazer aquilo que achava que Caetano Veloso fazia na Polygram. Entre os mesmos foram registrados constantes bate-bocas via imprensa. Foram se juntando desacertos com Elba Ramalho, Robertinho do Recife, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Belchior, Biga Maia, viúva de Petrúcio Maia, Patativa do Assaré, com a família da poetisa Cecília Meirelles, e a família do autor Heckel Tavares e outros. Suas atenções mergulharam em opção declarada para atender solicitações de mercado a qualquer custo.

Diferente dos primeiros discos, vieram posições de indistintas atitudes arrogantes e fome exagerada de autopromoção, utilizando à máquina da gravadora para alcançar metas pessoais, pagando esse tipo de sucesso a um alto custo numa espécie de suicídio lento de sua própria alma artística. De 78 a 80, eu estava contratado pela CBS, sob a direção artística Jairo Pires, (que saiu da gravadora em 79).

Realizei e produzi quatro discos nestes quatro anos e não guardo boas recordações do Fagner neste período. O cargo de direção do selo Epic era transitório, mas, em seu delírio de ego, imaginava que era eterno. Houve manipulação de departamentos e produções a seu favor com falta de ética profissional e artística, demonstrando seu caráter, despreparo e imaturidade. Mas não me deixo envenenar por mágoas e rancores.

O tempo aplaina arestas, cicatriza feridas, mas isto não significa apagar da memória os fatos: meus discos Ednardo (1979), Massafeira (disco duplo coletivo, de 1979) e Imã/Ednardo (1980) foram prejudicados em boicotes absurdos e surreais dentro da gravadora que, a princípio, deveria difundir seus produtos no mercado.
Os discos não eram distribuídos na mídia; o Massafeira foi engavetado por um ano e seis meses, por sugestão dele próprio que, embora participando do projeto artístico, o traiu e a todos os amigos e colegas que participaram coletivamente, alegando à direção da CBS que não era importante e daria prejuízo à gravadora.
Depois, quando o disco saiu numa queima de estoque deliberada em outubro de 1980, foi com um selo colado à capa fixando o preço de um álbum duplo de forma irrisória e desmerecedora, sem antes testá-lo em sua receptividade pública, numa atitude que até hoje não vi em nenhuma outra gravadora.
Foi prensado com verba de divulgação do disco Imã/Ednardo em outubro de 1980, prejudicando os lançamentos destes discos. Chegou ao cúmulo de mandar retirar aparelhagem de sonorização que pertencia à CBS, três horas antes do início de meu show de lançamento do disco Imã no Teatro Tereza Raquel no Rio de Janeiro, em 1980. Não dava mais tempo para contratar outra aparelhagem, mas o produtor Daniel Rodrigues, que trabalhava com Gilberto Gil e estava presente no momento, viu o fato e ficou indignado. Telefonou para o Gil, que disponibilizou, de imediato, a montagem do seu equipamento de sonorização para que o show pudesse acontecer.

Antônio Carlos dos Santos — Quais são seus projetos futuros?

Ednardo - Gravei três discos que tenciono lançar por meu selo. Um ao vivo, outro com trilhas de cinema e o terceiro gravado em estúdio com músicas inéditas. Tem a seqüência de shows que faço pelo Brasil e também a continuação de shows que eu, Amelinha e Belchior inauguramos recentemente no Rio de Janeiro, Petrópolis e Friburgo.
Pretendemos, sempre que houver possibilidades e condições, levá-lo a outras cidades. Inclusive, ele deve ser levado a Goiânia. Há contatos entre a produção local e nossa produção nesse sentido.

Entrevista publicada em março de 2003.
E republicada em Novembro de 2008.
Pela Revista Bula.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Algumas Reflexões sobre Idiotas e a Morte da Música

O capitalismo, ao avançar sobre a arte e tentar transformá-la em mercadoria, tenta assassiná-la. Como expressão da consciência humana, a arte é libertadora; como produto de um processo fetichizado, a mercadoria é alienante. A “industrialização” proposta pelos oligopólios do entretenimento é, na verdade, a antítese da arte.

VALÉRIO BEMFICA

http://www.amar.art.br/opiniao/opiniao_27.html

A morte da arte tornou-se, no século XX, tema de muitos pensadores. Os mais bem intencionados, porém pessimistas, premidos pelo crescimento da indústria cultural, não acreditavam que a humanidade pudesse continuar criando objetos dignos de reflexão estética: eles seriam gradualmente substituídos por produtos industrializados, capazes apenas de expressar sentimentos “prêt-à-porter”, descartáveis, pasteurizados. Anunciavam a morte da arte, mas como lamentação.

Nunca fomos adeptos de tais posições, mas reconhecemos que elas expressam uma tensão real. O capitalismo, ao avançar sobre a arte e tentar transformá-la em mercadoria, tenta assassiná-la. Como expressão da consciência humana, a arte é libertadora; como produto de um processo fetichizado, a mercadoria é alienante.
A “industrialização” proposta pelos oligopólios do entretenimento é, na verdade, a antítese da arte. Mas as premissas das quais partimos são diferentes. Ainda que conscientes do poderio deletério das grandes corporações na área da cultura, sempre consideramos que um dia elas serão derrotadas. A não ser que a barbárie destrua a humanidade, o que consideramos pouco provável, a arte continuará existindo, com seus condicionamentos históricos. E a sociedade do futuro, sem classes nem exploração, será uma sociedade de artistas.

Mas tampouco consideramos tais pensadores como inimigos: estão equivocados em sua visão catastrofista, mas gostariam que a arte continuasse viva. O conforto de suas cátedras talvez tenha embaçado a visão deles sobre a realidade e dificultado a decisão de trabalhar pela derrocada do sistema imperialista, ao invés de apenas observá-lo com horror.

Mas não foram apenas os filósofos que anunciaram o falecimento da arte. Alguns artistas também o fizeram. Em geral aqueles que estavam dentro do campo da indústria cultural, seja no centro ou em sua periferia. A estes nós chamamos de idiotas. Mas vale uma ressalva: empregamos o termo aqui não no sentido atual, mas no arcaico.

Reza a lenda que os antigos gregos, antes das reuniões na ágora onde os grandes temas de interesse coletivo seriam discutidos, cercavam a área da praça com cordas banhadas em betume. A medida visava marcar as túnicas daqueles que fugissem durante as reuniões e trocassem o dever de homens públicos por seus assuntos privados.
Os que andassem com as roupas marcadas pelas ruas da antiga Atenas eram chamados de “idiotes”. Ou seja, aqueles que não se importavam em nada com o coletivo, mas apenas consigo mesmos. Em geral é assim que se comportam tais “artistas”: anunciam a morte da arte não por alguma convicção ideológica, mas em benefício próprio e da indústria cultural.

No campo das artes plásticas é fácil verificar este processo, principalmente entre as vanguardas norte-americanas e européias do século XX, em especial no pós-guerra. Esgrimiam discursos libertários, praguejavam contra as academias e as regras e garantiam que qualquer coisa (de latas de sopa a urinóis) tinha virado arte e, portanto, a arte mesma não existia mais.
O que determinava o valor estético de um objeto deixava de ser aquilo que é expresso pela sua forma e conteúdo. Na prática, o valor estético passou a corresponder ao valor de mercado.

Sendo assim, o “artista” não precisa mais esforçar-se para produzir algo importante para a humanidade, mas sim algo que agrade ao mercado (e renda um dinheirinho).
E, neste sentido, ajudaram o mercado em seu intento de matar a arte, substituindo obras por mercadorias.

Mas não são as artes plásticas a motivação central da nossa reflexão. Elas surgem a partir de algumas matérias publicadas recentemente em um suplemento dito ilustrado de um jornalão paulista, especializado em mostrar o que há de mais podre e carcomido como sendo o último grito da moda.

A primeira delas traz notícias da Suécia, onde alguns selos musicais independentes estão supostamente “importunando as grandes gravadoras”. Nada temos contra o país nórdico, que já deu ao mundo Greta Garbo, Anita Ekberg e a família Bergman. Mas, no campo da música, só conseguimos lembrar do breguíssimo conjunto ABBA.
O que será que os tais selos fizeram para, agindo em um país menor e menos populoso - e com muito menos importância musical - do que a Bahia incomodar tanto as poderosas majors?

Segundo o jornal, descobriram que “a indústria da música morreu” e resolveram dar os CD’s de suas bandas como brinde para quem compra uma camiseta ou um ingresso para um show ou uma festa.

MERCADORIA

De imediato lembramos do filósofo iluminista alemão G. E. Lessing. Certa ocasião teve de responder a alguns críticos que não entendiam o porquê de os escultores que fizeram o grupo escultórico do Laocoonte terem retratado o sacerdote nu, e não vestido, como descrevera Virgílio na Eneida. Responde Lessing: “Um tecido, obra de mãos escravas, tem a mesma beleza que um corpo organizado, obra da eterna sabedoria”?
Podemos parafraseá-lo e perguntar: um pedaço de tecido com uma estampa qualquer, produzido em série por uma máquina, vale a mesma coisa do que uma obra de arte, obra da mais elevada consciência humana?
No entendimento das bandas de garagem suecas, vale mais, pois vendem a camiseta e dão a música de graça! É grande a tentação de afirmar que a música deve ser tão ruim que ninguém se dispõe a pagar por ela.

Pode até ser, mas os supostos artistas logo revelam que a sua posição não é muito diferente dos vanguardistas aos quais nos referíamos antes: “precisamos fazer alguma coisa para conseguir dinheiro de algum lugar, para pagar nossos aluguéis.”, afirmam eles. Ou seja, por trinta dinheiros, vale qualquer coisa, seja vender camisetas, seja vender CD’s: são só produtos, mercadorias, que pagam as contas e, eventualmente, rendem “quinze minutos de fama”.

NEGÓCIO

Se o jornalão só falasse da experiência sueca acreditaríamos que era apenas mais uma das inúmeras bobagens vendidas como novidade em suas páginas. Mas eis que, no dia seguinte, no mesmo jornal, surge outra idéia “brilhante”, desta vez de uma gravadora brasileira que se assume como independente: o download patrocinado. O genial mecanismo também prevê música grátis, em troca da exposição a um patrocinador.

O que vale é o marketing, a obra de arte, mais uma vez, é brinde. Nem uma palavra sobre os reais motivos que levaram o mercado brasileiro do disco cair da 6ª para a 13ª posição mundial, a encolher 75% em dez anos.

Apenas a cômoda conclusão de que não é possível mais ganhar dinheiro vendendo discos e que precisamos vender outra coisa... Para os desavisados pode parecer que estes gênios do capitalismo da nova geração, propondo “novos modelos de negócio”, estejam bombardeando a indústria cultural.
Mas é justamente o contrário. No mundo ideal dos oligopólios do entretenimento, já dissemos, não há arte, apenas mercadorias. No que depender deles a música, o cinema, a pintura, a escultura, enfim, toda e qualquer obra de arte será transformada em “commoditie”, ou seja, em produto estandartizado com preço definido em bolsa de valores.
Nada mais de autores, estilos, originalidade. Apenas bit’s, bites, títulos, conteúdos. Você compra um celular e já ganha 10 MB de música! Assine tal provedor de internet e ganhe 5 “gigas” de filmes. Qualquer bugiganga de camelô tendo como brinde música e imagem...

Longe de combater as majors, estes arremedos de capitalistas agem como a sua vanguarda. Criam o caldo de cultura para o assassínio da arte que os monopólios pretendem cometer. São, neste caso, perfeitos idiotas (no sentido acima): tentam garantir migalhas em detrimento dos interesses mais elevados, não apenas de seus pares, mas de todos os seres humanos.

Mas a humanidade já passou por períodos até mais complicados do que o atual, e a arte sobreviveu. Não seria agora, em um período em que o capitalismo caminha celeremente para a decadência, que ela iria perecer. O fato de a indústria cultural lutar com tanto afinco para acabar com ela é só um sintoma de sua degenerescência, na qual, certamente, arrastará junto os mercadores instalados em sua periferia. O futuro pertence à arte, não à barbárie.

(Valério Bemfica é dirigente da gravadora CPC-UMES)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Siri-Ará - Filme de Rosemberg Cariry



















“Siri-ará”: um olhar

Assisti com assombro e encantamento o mais novo filme do cineasta cearense Rosemberg Cariry. Não tenho dúvida de que ele é um marco na sua trajetória, porque não se trata apenas de mais uma leitura do significado histórico e cultural deste pedaço de litoral/sertão/além-mar que povoa o seu/nosso imaginário.

Mostra em profundidade e densidade simbólica que o Ceará, mesmo que lute para se esquecer disso, resulta de encontros desencontrados de povos e projetos civilizacionais, envoltos em camadas e camadas de poeira e vento, que ressurgem aqui e ali aos pedaços, feito assombração, picados e repicados em contos, quantas vezes apenas balbuciados.

Mostra em profundidade e densidade simbólica que o Ceará, mesmo que lute para se esquecer disso, resulta de encontros desencontrados de povos e projetos civilizacionais, envoltos em camadas e camadas de poeira e vento, que ressurgem aqui e ali aos pedaços, feito assombração, picados e repicados em contos, quantas vezes apenas balbuciados. Trata-se de uma história de reconstrução e articulação narrativa das mais difíceis.

A ideia de narrar essa leitura do passado por meio do protagonismo implícito no Reisado e Banda de Pífanos, como aquilo que permaneceu mais visível e manifesto até hoje da memória de batalhas entre portugueses e nativos, me parece magnífica porque é isso mesmo que tais ditas “manifestações culturais” representam e dá a elas tanta significação. Um filme de época não falaria tanto!

Pêro Coelho perambula com a sua família e tropa pelo sertanejo Eldorado, tendo como cenário as montanhas de pedra do Quixadá. O cenário é impressionante. Resulta numa paisagem onde cabem perfeitamente devaneios e sonhos, martírios e desejos crus de uns e outros. As falas delirantes e quase separadas dos protagonistas, como se a cada um fosse dado falar a si/de si mesmo, ignorando uns aos outros, em línguas distintas e ideais contrastantes; os ângulos dos rostos, olhares e silêncios dos ditos indígenas, parecem recortados nas próprias pedras, feitos de barro até na cor das roupas, imitando a cor da terra, da areia que anda a tudo cobrir. Há mágoas e ressentimentos, coisas doridas no peito e na lembrança. O horizonte aberto, a amplitude das paisagens alude a um espaço sem fim, a um ponto de chegada apenas imaginário.

Todos sofrem, matam, machucam, se penitenciam e perguntam sobre o sentido da busca dessa felicidade terrena. A índia-menina violentada é a nossa ancestral comum que estaria na raiz dessa dúvida e mal contada história colonial sobre a nossa origem como povo mestiço. O professor de Paris volta para se entender, a índia velha que lhe guia o caminho me parece a representação finamente alegórica dessa memória torturada e silenciada em busca da tal identidade nunca definida, nunca alcançada.

As prostitutas vistas pelo caminho, na viagem inversa ao sentido do relógio, saindo de uma moderna Fortaleza de concreto e seguindo o roteiro de peregrinação ambiciosa do Colonizador, são o sinal da busca eterna do gozo carnal masculino e do ganho/enriquecimento ilícito que custa a vida, a juventude, a beleza delas, cinco séculos vendidas, a troco de umas moedinhas de ouro, que andam a catar, misturadas com ossadas humanas que simbolizam a matança dos antepassados.

A morte está belamente representada, em máscara, vestimenta e diálogos, a discutir filosoficamente o passado e a existência com o professor. A sua aparição traz sempre cenas e reflexões valiosas, difíceis, torturantes. A ironia da fala dela, a sedução que exerce sobre ele, sobre nós, me pareceu um contraponto dessa luta entre presente-passado e presente-futuro. São cenas carregadas de magia e encanto.

No desfecho da narrativa, a cena da cerimônia antropofágica é um ritual impactante, inesperado, uma forma delirante de interpretar o sentido do passado e do que somos culturalmente. Um delírio que resulta de uma pergunta existencial de fim de vida, do professor que aceita a proposta da Morte, por não encontrar resposta que não o turbilhão das imagens mnemônicas e/ou oníricas, que chegam e se esvaem em ritmo histórico e alucinatório.

Nas cenas finais, volta a aparição de Fortaleza. A cidade, vista da Praia Mansa, surge assustadoramente bela e absurda, os prédios estão dispostos em ângulo que os revelam como se brotassem irreais do mar e nos perguntassem se era para isto tanto sangue derramado. Cria-se o nexo entre o litoral e o sertão, o Pêro Coelho e a mulher sem coisa alguma nas mãos, nem riqueza, nem vitória. Cordões cortados, ficam-lhes os filhos mortos pelo sertão. Vivo ficara apenas o menino, o filho da índia violentada. Nas palavras de Cioran, “agora só resta o seu filho bastardo, herdeiro desse império de dor”.

Antes, a cena da flor branca caída das mãos da menina-índia-violentada, mãe de todos nós, o contraste entre ela e o fio vermelho do sangue de sua defloração emociona, faz ver, a quem sabe ler a nossa dolorosa história colonial, a pedra angular desta trágica construção. Feito encarnação do colonizador, mergulha o casal no mar, como sinal da derrota, perdição e tentativa de retorno para o continente ou nada de onde vieram. As coroas do rei e da rainha são apanhadas da areia e postas na cabeça por brincantes a passar pela praia, como se andassem a buscar inspiração para as suas festas de Reisado. Faz-se o nexo entre cultura popular e história colonial.

Ainda não vi tudo. “Siri-ará” é um filme feito em linguagem alegórica, sugere outras leituras e deve ser visto mais vezes. A sua feitura artística apresenta componentes de teatro, dança e artes plásticas. Considero ser este um filme de maturidade. Uma lança fincada bem no coração, o dividindo ao meio. Evoca a lembrança de nossa ancestralidade e faz emergir uma elaboração mais complexa do que somos. Trata-se de um convite à rememoração mesmo que ela doa. Como diz o próprio diretor, está ali uma luta entre “a embriaguez da vida e o descanso da morte, quando concluímos que no lugar de verdades só há imagens alegóricas do que fomos/somos”. Ficam a ressoar no deserto as palavras delirantes de Cioran, a se dizer “o herege, o mestiço, o filho da puta, o ninguém” que “para sobreviver se reinventa”.


MARIA JURACI MAIA CAVALCANTE
Especial para o Caderno 3 - DIÁRIO DO NORDESTE
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Oldenburg, Alemanha, e professora da Universidade Federal do Ceará.
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=594560