quarta-feira, 13 de junho de 2007

Uma Viagem ao nosso Interior

Post enviado por Aura Edições Musicais
Artigo publicado no Jornal O Povo - Fortaleza / Ceará - 03/12/2005
Por Gilmar de Carvalho

Duvido que alguém deseje ser pai ou mãe dessa "idéia" da interiorização da cultura. Preconceituosa, ela parte da premissa equivocada que contrapõe o campo à cidade, o centro à periferia, como, em outros tempos, opôs a natureza à cultura.
Quem tem olhos para ver sabe que Fortaleza é uma grande cidade sertaneja. Levas e levas de retirantes aqui buscaram pouso.
As secas foram um fator determinante do inchaço que muitos chamam de crescimento.
Somos um grande acampamento e para chegarmos à condição de cidade ainda falta muito. Não nos iludamos com edifícios revestidos de granito (tapumes das favelas); "shoppings" (versões climatizadas do Beco da Poeira); vias expressas que não são vias, tampouco expressas; viadutos sem alça e culto à personalidade em praças públicas.
Esta cidade é uma ficção. Os sertanejos, tangidos pelas secas de 1932, 1942, 1958, pelo período de 1979 a 1983 trouxeram seus valores, suas visões de mundo, suas expectativas e seus sonhos. Deixaram sítios, fazendas e pequenas cidades pela ilusão da metrópole e a maioria terminou favelizada, ainda mais excluída, e com muitos de seus valores (inclusive éticos) esgarçados pelas tensões, pela violência (simbólica ou não) e pela perda de referenciais sem ter tempo nem condições para a elaboração de outros.

Não tivemos sensibilidade para ouvi-los, não soubemos respeitar o que eles trouxeram na bagagem, imediatamente tratamos de substituir folguedos, relatos e festas pelas "bugingangas" que pressupomos índices civilizatórios.
Parte das mazelas de Fortaleza vem daí. Não dos que chegaram em busca da construção de um projeto de vida, mas do que estavam aqui e não souberam recebê-los.
Acreditar que os problemas da cidade surgiram ou se agravaram por conta dos retirantes seria insistir numa leitura conservadora, fascistóide e excludente da possibilidade de se circular dentro do próprio país do qual se faz parte.

Mais ou menos a mesma coisa que fazem quando nos chamam, depreciativamente, de paraíbas na "cidade maravilhosa" ou de baianos na desvairada paulicéia. Mas o que é que tem a ver a cultura com tudo isso?
Uma pessoa minimamente informada tem consciência do abandono (ou desprezo) a que relegamos o interior do Estado, num culto à civilização que se volta para o mar.
Ora cultura é tudo: não tem começo nem fim, avesso e direito (como as antigas capas de chuva), erudito e popular, urbano e rural, pop ou folk.
Chega de dualismos que se perderam nas quermesses com seus partidos azuis e encarnados. O mundo em que vivemos é complexo demais para filosofia de botequim. Vale insistir na desmontagem do conceito equivocado de cultura com que trabalha o senso comum. Não vale considerar como cultura "as manifestações elevadas do espírito".
Chega de cultura de almanaque. Vale pensar a cultura além do espírito diletante, como a superação de clichês, longe de ser o adorno de uma comunidade. Melhor compreender a cultura como esse "angu", a liga que dá a consistência a uma sociedade, o tal sentimento de "pertença".

Assim sendo, não existem fronteiras e da mesma forma que não existe cultura "autêntica", "genuína" ou de "raiz", como querem alguns, não se pode impedir que se usem palavras estrangeiras como querem Aldo Rebelo, autor de um projeto de lei neste sentido ou Ariano Suassuna, com seu armorial que veio da Provença, da península ibérica e dos mouros & judeus.

Estrangeirismos antigos valem? E quem contesta que "rap" e repente tenham a mesma matriz? A cultura é circular ("circuladô de fulô"), tem sua dinâmica e não se pode falar em interiorização quando o interior é aqui.
Ou quando o interior é cosmopolita a ponto de gerar, por exemplo, os Irmãos Aniceto, talvez a mais completa tradução de nossa riqueza e diversidade culturais. Ou quando qualquer rua do centro ou da periferia de Fortaleza é mais interiorana que qualquer rua de qualquer distrito do município cearense com o pior Índice de Desenvolvimento Humano.
Falar em interiorização da cultura é admitir os guetos, é propor um "apartheid" que não se sustenta. Além de tudo, parte-se de um iluminismo às avessas. Como se nós fôssemos os faróis que vão guiar os sertanejos na conquista da informação e atualizá-los com os modismos (estéticos e tecnológicos) dos novos tempos.

Ora, o sertão está cheio de parabólicas prateadas, e fincadas ao lado de casas de taipa, nos dão a exata dimensão da superação de fronteiras. Ora, qualquer cidade do interior tem seu "cyber" café. Todo aluno de primeiro semestre de jornalismo sabe disso. Estabelecer com o interior uma via de mão-dupla seria uma proposta viável.

O sertão e os pequenos núcleos urbanos não precisam de ajuda, têm direito e a expressão dessa gente não precisa obedecer aos formatos da indústria cultural. Equivocada também é a idéia da cultura como geração de empregos (cultura é vida) e a omissão do Estado de suas atribuições, tentando resolver tudo com renúncia fiscal e falsos mecenatos, quando deveria incluir os investimento nesse campo como um percentual do orçamento. Isso não se faz, mas gastar com propaganda, aí é outra história...

Gilmar de Carvalho é professor do Curso de Comunicação Social da UFC.

Nenhum comentário: