quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Chorinho e Cachaça: Estes Eruditos Populares


Esta semana ganhei de presente de aniversário o álbum duplo “Ao Jacob, seus Bandolins” lançado em 2003 belissimamente pelo Biscoito Fino, certamente um dos selos musicais mais importantes do Brasil e que conta com a fina-flor da MPB em seu catálogo.

O álbum, cujo projeto foi idealizado por Hermínio Bello de Carvalho e produzido por Luiz Otávio Braga e Pedro Aragão é dividido em duas partes: o primeiro disco possui 15 faixas gravadas ao vivo em dezembro de 2002 na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, e traz a releitura de vários choros do mestre bem como músicas de Pixinguinha (Cheguei) e Radamés Gnattali (Suíte Retratos) que tiveram interpretações magistrais realizadas por Jacob em 1955 e 1964, respectivamente. Outras pérolas de Jacob compõem o disco a exemplo de “Doce de Coco”, “Benzinho”, “Assanhado”, “Noites Cariocas”. Participaram do concerto vários músicos de primeira linha, entre eles Joel Nascimento, Maurício Carrilho, Yamandú Costa, Armandinho, Zé da Velha, Altamiro Carrilho, entre outros.


Na última faixa, “Noites Cariocas”, utilizando-se técnicas de re-mixagem foi possível que Jacob “tocasse” com os referidos músicos em versão emocionante. Já o segundo disco foi gravado entre janeiro de março de 2003 nos estúdios do Biscoito Fino e conta com a participação, entre outros, de Joyce, Guinga, Zé Renato, Nilze Carvalho, Olívia Hime, Francis Hime e Mauro Senise.


Algumas faixas foram acrescidas de letras como “Noites Cariocas”, “Benzinho” (Hermínio Bello de Carvalho), “Falta-me Você” (Geraldo Carneiro), “Meu Lamento” (Ataufo Alves) e “Bola Preta” (Aldir Blanc). Este álbum, aquisição obrigatória para aqueles que gostam de música de verdade, descansa em minha coleção ao lado de outros mestres do chorinho como Altamiro Carrilho, Waldir Azevedo e Joel Nascimento.


O chorinho é uma das músicas mais intrigantes que conheço. Embora tenha em seu contexto um extremo apelo popular e com a cara do Brasil e, mais especificamente, do Rio de Janeiro, sua execução é para poucos.
O virtuosismo musical que se exige do chorão talvez seja maior que a do jazz; seja por conta das complicadas estruturas das partituras, seja pela velocidade com que o instrumento é tocado. É difícil imaginar músicos maravilhosos como Herbie Mann, John McLaughlin, Al di Meola, Chick Corea e Joe Farrell tocando “Assanhado”, “Brasileirinho”, “Urubu Malandro”. Mestre da música erudita, o flautista Jean-Pierre Rampal, de quem tive o prazer de assistir a um concerto no Teatro Castro Alves em Salvador pouco antes de sua morte em 2000, certa vez disse ao Sivuca que no mundo havia os flautistas e o Altamiro Carrilho.

Lembro de uma entrevista do Altamiro à TV em que ele relatava que ao final de um show seu nos Estados Unidos, Miles Davis o procurou parabenizando-o pelo improviso típico do Jazz. Ante ao gênio incrédulo o chorão disse não se tratar nem de Jazz nem de improviso, pois era chorinho e todos os acordes estavam nas partituras. Portanto, o chorinho é a mais popular “música erudita” do mundo, pois está com um pé no terreiro de chão batido do samba e nos palcos de cedro da música clássica.


Sim, e daí?, O que tem a ver o chorinho com a cachaça. Pode perguntar o querido leitor. A isto respondo: tudo!!!
A partir do século XVI, a cachaça, da mesma forma que se fazia com os restos da fermentação do suco da uva, começou a ser destilada com a ajuda de um alambique. Seu primeiro nome foi aguardente de cana e ela era dada aos escravos junto com a primeira refeição do dia para que pudessem suportar melhor o trabalho nos canaviais.

Com o passar do tempo, o processo para a obtenção desta aguardente foi melhorando, assim como sua qualidade. Seu consumo cresceu de maneira tão rápida que a Coroa Portuguesa viu perigar a venda de sua aguardente nacional, a "bagaceira", para as colônias.
Em 1635, a metrópole acabou proibindo a venda de cachaça no estado da Bahia e, quatro anos depois, tentou proibir sua fabricação. No entanto, a cachaça já tinha se tornada a bebida preferida no então Brasil-colônia.
Ainda assim, por ser mais barata que outras bebidas, inclusive da cerveja, a cachaça sempre foi mais consumida pela classe mais humilde da população brasileira. Embora não seja especialista no assunto, posso arriscar a dizer que a cachaça se sofisticou nos últimos 20 ou 30 anos chegando a uma qualidade tal que a põe como um item importante de exportação havendo marcas da bebidas mais caras que muito uísque de 12 anos.
Posso não ser especialista em cachaça, mas sou um grande apreciador das boas marcas e, como tal, possuo um ritual para saborear esta bebida tão brasileira.

Tomar (a boa) cachaça requer extrema formalidade: sentir o aroma profundamente, utilizar taça apropriada e delicada, degustar lentamente apreciando o sabor. Realmente é uma grande emoção, talvez com mesmo rigor (de amador, obviamente) com que se aprecia um bom vinho.
É necessário momento especial, apreciação e sensibilidade.

Da mesma forma que o vinho, não se deve tomar cachaça em grandes quantidades e, muito menos, misturá-la com nada (claro, as cachaças mais delicadas, porque ninguém pode menosprezar a caipirinha, mas para isto há marcas de cachaça de menor delicadeza).
Nos momentos especiais em que aprecio esta riqueza nacional fico a me admirar: como pode ser tão popular e tão “erudita” ao mesmo tempo?

Pois é, mesmo com apelo tão popular muitas marcas de cachaça necessitam de “virtuosismo” para serem fabricadas e mais ainda para serem apreciadas. Da mesma forma que o chorinho, a cachaça possuí um pé no chão e outro no cedro. E se você sentar para tomar uma boa cachaça ouvindo “Pedacinho de Céu” de Waldir Azevedo chegará à conclusão de que nada mais brasileiro que chorinho e cachaça. Tão populares e tão eruditos ao mesmo tempo.


Antonio Inácio dos Santos Júnior

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