Gilmar de Carvalho reflete sobre a formação da cultura cearense, as características que nos fazem exímios artesãos e iconoclastas sem passado.
Gilmar de Carvalho - especial para O POVO 08 Mai 2010
É sempre oportuna a discussão sobre a cultura no Ceará. À medida que falamos, jogamos luz sobre as áreas de sombras, revolvemos o que se esconde por trás do verniz das aparências e chegamos mais próximos dos ``corações guerreiros``, como canta o Hino do Estado, com letra de Thomaz Lopes e composição de Alberto Nepomuceno.
Pode-se pensar na importância indígena (muitas etnias) na formação do tripé com a herança africana (diversas nações) e a contribuição lusa (com traços mouros e judaicos, dentre outros). No nosso caso, esta herança tem sido negada desde sempre.
Decreto de 1861 rejeitava esta presença. José de Alencar foi forte e inaugurou com Iracema uma base simbólica para nossa fundação, propondo um relato mítico que se atualiza hoje com a presença estrangeira e o mercado do sexo e afirmando nossa condição indígena.
A negação persiste por parte de quem teme que não vinguem seus projetos de siderúrgicas, refinarias e termoelétricas na terra dos Anacés, por exemplo. Esta insistência da negação revela o lado perverso de uma não aceitação do que somos, como se buscássemos uma idealização que o espelho insiste em não refletir.
A partir daí, tudo dá voltas, se mascara e complica um ponto nodal, porque o que somos depende de uma atitude que implica a aceitação de limites, a quebra de estereótipos (irreverência, hospitalidade, etc) e a (re)construção madura de um estatuto e de uma condição.
Nossa história é uma história de lutas e de adequação a um meio adverso. O areal das primeiras crônicas, a dificuldade de desembarque, as secas, tudo nos levou a saídas em que buscamos a criatividade e a sobrevivência.
Nossa tradicional habilidade vem daí. Aprendemos a conviver com o meio e trabalhamos, sem nos darmos conta, muito bem a relação da natureza com a cultura. Por isso, bordamos, somos seleiros, ceramistas, esculpimos. Vamos do utilitário ao estético (que não se contradizem) num piscar de olhos. Nossa cozinha também é um lugar de resistência. Trabalhamos bem as sobras e o que nos legou um chão árido. Nossa farinha vai da paçoca ao pirão. E assim por diante...
Somos nômades e isso já foi dito muitas vezes antes. Falam em ciganos e insistem que somos judeus brasileiros. Não faz muito sentido. Saímos daqui pelas condições adversas que se nos apresentam.
A ``síndrome do carneiro`` foi proposta por Augusto Pontes, em parceria com Ednardo. E se voltávamos em emissões das redes de televisão, voltamos mais ainda hoje, com a Internet e com novas mídias que se antecipam interativas.
A rigor, as elites do século XIX precisaram do êxodo para uma afirmação na Corte (Alencar, Araripe Jr, Nepomuceno, Beviláqua, Capistrano). Hoje, nem tanto. Os intelectuais do século XIX talvez intuíssem que somos fortes quando nos juntamos.
Sozinhos, valemos pouco diante das regras do mercado. Nossos ancestrais africanos deixaram os maracatus. Plangentes e doloridos, os cortejos foram jogados no meio do carnaval, quando não têm nada de dionisíacos.
E mesmo os cultos afros foram tratados com o caso de polícia até a primeira metade do século XX, que o diga o antropólogo Ismael Pordeus. Sobre os portugueses, trouxeram uma língua que nos une e nos dá liga.
Além disso, temos festas dos caretas, pastoris, encenações de folguedos e uma literatura da voz (cordel) que se junta com a cantoria na atualização de uma herança trovadoresca. Temos um certo fascínio pelo colonizador. Se Iracema se apaixonou pelo branco Martim, nos embevecemos depois pelos pianos franceses, pelas roupas de casimira e pelas luvas. Ficamos fascinados pelos gringos que trouxeram os jipes, uma bebida estranha, que não sabemos de que é feita e que montaram uma base aqui durante a Segunda Grande Guerra.
Hoje, algumas meninas ainda aguardam voos que chegam da Europa como um sonho de Cinderela que nunca se concretizará.
O deslumbramento é atávico e atrapalha a construção de um jeito que tenha ver com nossa ``matutice``, com nossa grossura e com nossos valores. Isto nos leva para o campo escorregadio da paródia e da caricatura, das quais tratam tão bem nossos humoristas.
Somos novidadeiros e iconoclastas. Adoramos passar um trator por cima de um prédio histórico e tratamos a memória como se fosse um sambaqui. Aqui ela não é retomada e atualizada.
Antes, ela se transforma em camadas que pisamos e negamos, até que venham as escavações e mostram os cacos do que fomos e poderíamos ter sido se não tivéssemos triturado tudo em nome de um ideal de progresso que não se sustenta.
Complicado viver no Ceará. Pensar a cultura, mais complicado ainda, tamanho o vaivém a que somos impostos pela mídia, pelas políticas culturais equivocadas e pelo aparato de uma incipiente Indústria Cultural.
Não se trata de querer encontrar vilão. Somos todos culpados. Ficamos quietos quando devíamos gritar e somos cúmplices da nossa sujeição.
Uma panorâmica mostraria momentos importantes, como a Padaria Espiritual, quando conseguimos nos antecipar, em 30 anos, aos pressupostos modernistas que viriam à tona com a Semana de Arte Moderna, em 1922.
Podemos pensar na religiosidade sertaneja que nos deu o padre Ibiapina, matriz das prédicas do Conselheiro e da prática do padre Cícero. Estivemos presentes ao romance social dos anos 1930. Combatemos as oligarquias na Revolução de Outubro, deste mesmo ano, para depois criarmos outras oligarquias.
Também fomos fortes com movimentos como o Clã, a Scap que revelou Aldemir e Bandeira, o Pessoal do Ceará que ainda hoje cantamos (vem um disco lindo da Mona Gadelha por aí, chamado Praia Lírica). Enfim tivemos picos e muitas baixas. Demos o que falar. Fomos importantes e nos esvaziamos.
Esta constatação não é nostálgica. O melhor está sempre por vir. O que é verdadeiro é que não soubemos construir algo que tenha impacto na cena nacional ou que vá além da ditadura do mercado, que se insinue pelas frestas, como algo inovador, contestador e forte.
Parte disso tudo se deve à política dos editais, uma forma de domesticar o impulso crítico de uma geração que vive das migalhas de uma legislação questionável. No que se refere às construções teóricas, vamos dos cronistas, interessantes pelas informações que trouxeram, aos impressionistas.
Pode-se pensar num diálogo com uma história cultural que vai nos levar a Canclini e Barbero, mas nem tudo se reduz às hibridações e aos sincretismos (Canevacci). Temos especificidades que precisamos compreender melhor. Sem futurologia, estamos perplexos diante dos novos rumos que se antecipam.
Não sabemos como vai ser. Provavelmente, ainda embarcaremos, por algum tempo, nas muletas teóricas que servem como panacéias. Enquanto isso, no dia a dia, no trabalho calado e sem refletores, a tradição tece sua trama, o hoje se afirma com suas ``gambiarras`` e vamos em frente, aos trambolhões, porque não se pode voltar atrás quando se está com os pés na estrada.
Gilmar de Carvalho, jornalista e professor do Departamento de Comunicação Social da UFC
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