domingo, 15 de fevereiro de 2009

Ginga Pop - MARACATU

Nasceu na África, chegou ao Brasil nas caravelas, meteu-se nos matos e mocambos, mesclou-se com tapuias e tupis. Começou como história real, virou devoção religiosa e já conta mais de século de vida profana, renovando-se a cada carnaval. Nas últimas décadas, extrapolou os três dias de Momo, entrou para a universidade e faz parte da contemporânea cena musical


Eleuda de Carvalho
da Redação - Jornal O POVO - 05 de Fevereiro de 2005


Minha embaixada chegou. Deixa meu povo passar. Meu povo pede licença. Pra na batucada desacatar (Assis Valente, carnaval de 1934)


Coisa de negro. De negro e branco. De negro, branco e índio.
Totalmente brasileiro, o maracatu é uma das mais bonitas expressões musicais, cênicas e coreográficas do nosso carnaval.
Em especial, no Ceará e em Pernambuco.

Maracatu - O nome, dúvidas de filólogos. Mário de Andrade, o poeta modernista e profundo pesquisador da música popular brasileira, sugere uma origem ameríndia.
Mescla de maracá, o instrumento musical e religioso de tapuias e tupis, e catu, que significa lindeza. Ou, ainda, de mará, guerra. Guerra bonita. Guerra de brincadeira. Resquício das inúmeras, violentas lutas de negros e índios, nesta imensidão do Novo Mundo, contra o domínio de Portugal.


Porto de Ceuta, 1415.

As naus portuguesas chegam ao litoral norte da África pela primeira vez. A viagem faz parte do grande projeto ibérico de reconquista, isto é, da expulsão dos mouros da península.
Porém, os lusitanos não se conformaram em somente tanger os muçulmanos do seu território.

Com apoio da igreja católica, se investiram de cruzados e desbravaram o mundo, a converter infiéis. Já em 1444 acontece a primeira venda pública de escravos em Lisboa.
Dois anos depois, os portugueses aproavam no golfo da Guiné. Negócio rendoso, este da escravaria.


Para o rei e para o papa. Em 1452, o apresamento dos negros da África é reforçado por bula de Nicolau V, que escreveu ao monarca de Portugal: ''Nós lhe outorgamos, pelos presentes documentos, com nossa autoridade apostólica, plena e livre permissão de invadir, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e qualquer outro incrédulo ou inimigo de Cristo, onde quer que seja, como também seus reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades e reduzir essas pessoas à escravidão perpétua''.


Em 1482, o navegador Diogo Cão chega ao reino do Congo.
Escreveu uma carta ao rei: ''Na era da criação do mundo de 6881, do nascimento de Nosso Senhor, o mui alto, mui excelente e príncipe el-rei D. João II mandou descobrir estas terras e pôr este padrão por Diogo Cão, escudeiro da sua casa''.

Cão envia uma embaixada de quatro dos seus homens ao manicongo, o rei, na capital de seu reino, a cidade de Mbanza. Como não voltassem, prendeu o mesmo tanto de negros e os levou a Portugal, para serem catequizados e devidamente batizados.

Voltando em 1484, mandou um deles a Mbanza, ao encontro do manicongo. Um cronista da época registrou: ''Todos os grandes do reino estavam em Mbanza. Os portugueses entraram na cidade. O rei estava sentado num trono de marfim colocado sobre um estrado. Coube aos frades entregar ao rei os presentes do monarca português - louças e talheres em ouro e prata; alfaias do culto; pratos de ouro e prata; brocados em peças, panos de seda; veludos de carmezim; painéis de boa pintura; rabos de cavalo guarnecidos de prata. Finalmente surgiu uma cruz de prata, benzida pelo papa Inocêncio VIII. Os portugueses ajoelharam-se. O rei, que tinha o tronco nu, um rabo de cavalo a pender-lhe do ombro esquerdo e manto de damasco a tapar-lhe os pés, inclinou-se. Seguiu-se depois uma ruidosa festa, à maneira africana''. É desses encontros que vem a tradição da embaixada.



Nem todos os manicongos foram tão receptivos quanto aquele. Até porque Portugal não respeitava os tratados nem a receptividade dos nativos. Aprisionavam membros da casa real. Destruíam aldeias e cidades. Tomavam o ouro, o marfim, as peles preciosas. Um clima de revolta no ar. Por volta de 1600, o reino do Congo tem à frente uma rainha, Nginga Nbandi, ou simplesmente rainha Ginga.

Ela foi batizada com o nome de Ana de Souza em 1622 mas, não suportando os desmandos da coroa portuguesa, morreu guerreando em defesa de seu reino. É esta rainha guerreira que vai virar o símbolo principal, embora encoberto, das festas de coroação dos reis do Congo, o Auto dos Congos - brincadeira permitida pelo portugueses tanto em Portugal quanto na imensa colônia da América. Festejo com toda a pompa no adro das igrejas de Nossa Senhora do Rosário. Um momento de saborear a liberdade e a glória perdidas na escravidão. A festa liberava os negros, ao menos por um dia.

Do auto dos congos dos séculos 17 e 18, surgiram os maracatus. No Ceará, há registro deles desde o século 19.
Entraram século 20 adiante, animando os carnavais. Hoje em dia existem em Fortaleza os maracatus Az de Ouro, onde pontifica a figura majestosa do mestre Juca do Balaio; o Vozes d'África, Nação Iracema, Nação Baobab (de Raimundo Praxedes), o Rei de Paus, o Rei Zumbi, o Kizomba (onde brinca Descartes Gadelha) e o estreante Nação Fortaleza.

O maracatu mereceu registros de pesquisadores como Mário de Andrade, Câmara Cascudo e do maestro Guerra-Peixe. Em meados dos anos 60, Jorge Mautner compôs ''Maracatu Atômico'', gravado por Gilberto Gil.

Na década de 70, Alceu Valença, em Pernambuco, e Ednardo, no Ceará, criaram maracatus com levada pop de guitarras. O ritmo ganhará novo e definitivo impulso nos anos 90, com Chico Science e seu Nação Zumbi, que fundiram maracatu rural e hip hop.

Por aqui, Calé Alencar também se dedicava às loas, tanto nos seus discos e shows quanto puxando o cortejo na avenida. O ritmo daqui, tradicionalmente mais ralentado, vem se modificando aos poucos, com introduções de músicos como Descartes Gadelha, que acelerou a levada. A batida dos tambores e a pancada do triângulo de ferro também estão na matriz de uma dezena de grupos e bandas, como Eletrocactus, Dr. Raiz, Kauandes, Kapruk, Soul Nêgo, Dona Zefinha, Batikum, Moraca, Tambores de Guaramiranga, Brincantes Cordão do Caroá, Caravana Cultural e Vigna Vulgaris. Todos com muito ritmo, muita garra, muita beleza. E muita, muita ginga.

Colaborou - Teresa Monteiro

Gamela da nossa mistura.

O cantor e compositor cearense botou o maracatu pra tocar no rádio e na tevê. Com Pavão Mysteriozo, a batida do ferro e o poema de cordel estavam todos os dias na Globo.

Maracatu Estrela Brilhante
Maracatu o teu brilho errante
Gamela da nossa mistura
Tão linda tão mista e tão pura
Maracatu
Garra maracá já guerreiro
Batuque ferro e ganzá
A flecha cravada no céu brasileiro
Infinitamente cantar, cantar, cantar

''Maracatu Estrela Brilhante'', de Ednardo - disco Imã.

A UFC fervilhava, naqueles fins dos anos 60. Aliás: o mundo inteiro ardia com a chama acesa por uma geração insubmissa que ousou subverter os costumes, demolir o poder.
Por estas bandas de cá, esse fogo queimava. Parte dos moços escolheu o sonho da psicodelia ao pesadelo que se anunciava nos clarins dos quartéis. Outra parte preferiu o coletivo à singularidade. Teve também os que costuraram o roto tecido social com as linhas da arte. Mesclando os ingredientes do inconformismo e o combate à velha ordem, criaram acordes novos, dissonantes.

Falaram de tudo isso, do momento, da rebeldia, da força da juventude. É nessa encruzilhada de tempo e espaço que emerge o chamado Pessoal do Ceará. Dentre eles, o estudante de química José Ednardo Soares Costa Sousa.

No princípio, tocaram seus violões, soltaram a voz nos centros acadêmicos, daí aos bares da cidade, aos botecos da beira do mar. Que som é esse?

Um dia, tiveram que sair da aldeia. Brasília. São Paulo. Rio de Janeiro. Pra ''voltar em vídeo-tape e revistas supercoloridas'', como cantou Ednardo em ''Carneiro'', faixa de abertura do seu primeiro disco solo.
Primeiro, veio acompanhado, em 1973. Na capa do LP diferente, a almofada e os bilros da rendeira.
Era o Pessoal do Ceará: Ednardo, Rodger Rogério e Téti (o outro título do disco é Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem). Ednardo abre a cena com o maracatu ''Ingazeiras'', que ele fez em homenagem ao artista plástico Aldemir Martins. Depois, outro maracatu assinado por ele, ''Terral''.
Aí vêm ''Cavalo-Ferro'' (Ricardo Bezerra e Fagner), Rodger Rogério cantando ''Curta-Metragem'' (dele e José Evangelista, o Dedé), Téti em ''Dono dos teus olhos'', de Humberto Teixeira.
E ainda tem outro maracatu do Ednardo, ''Beira-Mar''. Pronto. Do asfalto carnavalesco, o maracatu cearense ingressava pela porta da frente na MPB.
Em 74, com O Romance do Pavão Mysteriozo, Ednardo consolida seu caminhar.
Neste disco emblemático, além da faixa título, inesquecível, tem ''Dorothy Lamour'' (de Petrúcio Maia e Fausto Nilo) e ''A palo seco'' (de Belchior). Em 76, ''Pavão Mysteriozo'' é tema de abertura da novela Saramandaia, de Dias Gomes, e Ednardo lança outro LP.

O nome, um luxo - Do boi só se perde o BERRO e é justamente o que eu vim apresentar.
Aqui, a história cearense serve de mote pra canções como ''Artigo 26'' e ''Padaria Espiritual'', ambas sobre o movimento literário que agitou Fortaleza no final do século 19;

Tem ''Passeio Público'', para os confederados, e o maracatu ''Longarinas''. No disco de 77, O Azul e o Encarnado, Ednardo resgata o pastoril (entre as faixas, salta um ritmo maranhense, em ''Boi Mandingueiro''). A reverência aos ancestrais está presente em Cauim, de 78, também título de filme dirigido por Ednardo.

Em 79, o disco Ednardo inclui a saborosa ''A manga-rosa'', a lírica ''Flora'', e a instrumental ''Araguaia''. Parcerias em ''Lagoa de Aluá'' (com Climério e Vicente Lopes), ''Enquanto engoma a calça'' (dele e Climério), além de ''Lupiscínica'' (de Petrúcio Maia e Augusto Pontes).
Em 80, Ednardo lança o solo Imã e o duplo Massafeira (fruto do evento homônimo, que reuniu o Pessoal do Ceará à nova geração - Calé Alencar, Chico Pio, Stélio Valle, Pachelly Jamacaru, os irmãos Fonteles, além da presença luxuosa de Patativa do Assaré).

Ainda nos anos 80, o artista lança Terra da Luz, outro Ednardo e Libertree.
Volta a gravar em 91, o ao vivo Rubi.
Em 2000, Única Pessoa.
Em 2002, lança, com Belchior e Amelinha, um segundo Pessoal do Ceará.
Assina também as trilhas sonoras dos filmes Tigipió, de 85, Luzia-Homem, de 87 (no qual também atua), e O calor da pele, de 94.

Ednardo nasceu em Fortaleza, no dia 17 de abril de 1945. À beira dos 60 anos, o artista continua criando, encantando e influindo em novas gerações por todo o Brasil.

Eleuda de Carvalho

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ENTREVISTA - Concedida por Ednardo à Eleuda de Carvalho - Publicada no O POVO em 25 Fevereiro de 2005.

O POVO - Antes de falar sobre sua música e de como incorporou à sua linguagem a batida do maracatu cearense, qual foi a primeira imagem do maracatu que você viu, ouviu? Por exemplo, o Estrela Brilhante, que você homenageou na canção.

Ednardo - Não deve passar despercebido, nem aos olhos mais desatentos, o simbologismo do maracatu em suas cargas conceituais. Força cósmica, o maracatu perpassa incólume ao tempo. No caldeirão brasileiro de raças, somos índios, pretos, brancos, amarelos, vermelhos, marrons, sararás, caboclos, cafuzos, crioulos.
A característica notável e ímpar do maracatu cearense, além da presença de nosso povo miscigenado, é a atitude guerreira na síntese de resistência em festa de libertação e manutenção de culturas.
Além do interessante vestuário, os rostos pintados, a dança, os instrumentos de percussões onde adicionam o triângulo de maracatu, fabricado com sabedoria de tonalidades harmônicas, são todos estes itens elementos diferenciais, significativos e inconfundíveis.

Na infância, vi pela primeira vez os maracatus em Fortaleza: Estrela Brilhante, Ás de Espadas, Ás de Ouro, vinham faiscantes pela rua que não tinha eficiente iluminação pública, causavam efeito especial à auto-iluminação dos blocos feita por dezenas de lampiões, candelabros de lamparinas revestidos com tênues tecidos vermelho-laranja-amarelo que tinham efeitos de tochas de fogo, faziam uma espécie de cordão que circundava o bloco.

Vinha o baliza com uns passos gingados e um bastão nas mãos, sua dança uma mistura da pisada indígena com a malemolência africana, o abre-alas para os morubixáuas e suas índias e uma grande ala de índios, os pajés faziam circunvoluções, um cheiro de ervas aromáticas no ar, aí vinha a corte real, com a calunga, os grandes leques de abano, o balaieiro com frutas da região incrivelmente equilibradas na cabeça sem por as mãos enquanto gingava.

Depois soube que tinham rituais, primeiro se reuniam no Parque da Liberdade (Cidade da Criança, em frente à praça Coração de Jesus), depois juntavam-se os blocos na praça do Passeio Público e começavam a bater tambores, entoar loas, de longe a gente escutava a preparação e quando o maracatu passava tinha tal emoção contagiante, o grave dos tambores, o contraponto com o timbre metálico agudo dos triângulos.

OP - Fale do Pavão Mysteriozo, o folheto, e de como você criou, a partir dele e com a pancada do maracatu, uma das mais emblemáticas músicas do Brasil, tema de uma novela surrealista do Dias Gomes, Saramandaia (1976).

Ednardo - Com um pé na realidade nas cenas e culturas do Ceará, e outro nas realidades urbanas, Fortaleza, São Paulo, Rio, aprendizado e estradas, informações amplas e descobrindo outras. O Nordeste brasileiro tem confluência com a tradição ibérica, hoje em dia, mesmo os mais novos - que ainda não saibam onde estão pisando - é bom que se liguem no prosseguimento do que foi construído por seus antecessores de todas as raças.
O folheto de cordel do Pavão Mysteriozo é uma destas consciências de que artistas são depositários da sabedoria popular, devemos procurar entender estes ensinamentos, podemos dar nosso grau conforme momento e lugar, atuamos no emblema contemporâneo do mundo. Apenas dei forma, ritmo e voz, concretizando em sons o que todos já sabem, e podiam estar esquecidos, como se escolhe flores, palavras e energias para ofertar a quem estiver aberto para receber.

OP - O maracatu era, até você capturar em pleno vôo este misterioso e belo pavão, umas canções do Capiba, quer dizer, se alguém sabia o que era, era via Pernambuco. Tanto que muita gente ainda pensa que o nosso maracatu é derivado do maracatu de lá, trazido na década de 30 pelo folião Pedro Boca Aberta, depois de um carnaval que ele passou no Recife.
O escritor cearense Gustavo Barroso, no seu livro de memórias Coração de Menino, relembra o pavor que tinha da batida lenta dos maracatus no centro de Fortaleza, fala das caras tisnadas, isto recordando fatos de 1880, por aí.

Ednardo - O maracatu do Ceará existe há bastante tempo. Ao perceber sua beleza, trabalhei para criar uma das possibilidades de abrir escaninhos locais onde eram mantidos e mostrar para um maior número de pessoas.

Se tão antigo em organizações de blocos quanto o de Pernambuco, é interrogação que será mais esclarecida quando fizerem estudos detalhados, mas esta espécie de ''simbiose estética'' está entranhada em nossos arquétipos culturais e raciais, tem visíveis diferenciações, leva a crer que é pouco provável que tenha sido simplesmente ''importado'' de outro estado, isto pareceria estratégia de exclusividade sobre o maracatu.

O sincretismo religioso que acontece no Brasil entre as civilizações ameríndias, européias e africanas desde o descobrimento à atualidade não pertence a um estado definido por fronteiras físicas, está onde estão pessoas de diferentes credos e raças. Existem versões sobre o sincretismo nos diversos aspectos do cerimonial, estético, doutrinário das teorias místicas relacionadas com a formação do mundo e conjunto de divindades que formam a história das religiões.

Uma delas, seria a forma da civilização dominante impor sutilmente sua própria religião e cultura aos dominados e a outra, da cultura dominada burlar a dominante, fingindo adorar seus deuses, mas na realidade venerando suas próprias entidades, associando umas às outras. Sabe-se dos cortejos negros das irmandades religiosas do Crato, Icó, registrado por Eduardo Campos, Sérgio Pires, Gilmar de Carvalho, e também nas memórias de Gustavo Barroso.

Mas em nenhum momento o pessoal que faz o maracatu cearense tem dúvidas que isto pertence a eles, nesta mistura entre o sagrado e o profano, entre o sonho e a realidade.

OP - Diferente dos dois estilos do maracatu do Pernambuco, o mais do candomblé, de Nação chamado, e o mais acaboclado da Zona da Mata - mas ambos com um ritmo acelerado.
Já o maracatu cabeça-chata tem esta coisa lenta, lenta, lenta, linda, quase uma latomia, um bendito pungente, som hipnótico, uma tristeza pungente marcada pela batida poderosa no triângulo de ferro.

Ednardo - O maracatu cearense não tem viés de tristeza e severidade, são palavras que serviriam para o equívoco de tese que alguns defendem para retirá-lo do carnaval e colocá-lo no folclore, como objeto de pesquisa no passado.
O maracatu cearense tem a força da resistência e alegria.

Filmando Cauim em Fortaleza, na parte do roteiro do filme realizada no carnaval de 1977, um dos focos no maracatu cearense, um repórter foi me entrevistar em plena ação de filmagens: - Você não acha inadequado e triste o maracatu cearense, seria melhor retirá-lo do carnaval.
Na época, faziam campanha para o carnaval cearense se assemelhar às escolas de samba do Rio.

No insight do momento mostrei que os componentes do maracatu estavam desfilando com rostos de felicidade para o público e não para a câmera.
Perguntei: onde você está vendo tristeza? Lembro que conversando com Descartes Gadelha (72), ele junto com amigos estavam formatando a Escola de Samba Ispáia Brasa, quando falou de concepções rítmicas que forneciam uma identidade misturando batuques indígenas com negros, eu disse que era um achado fenomenal e quando possível levasse para o maracatu do Ceará.

Eu já havia dado uma acelerada rítmica em alguns maracatus que gravei em discos, Descartes com outros amigos formataram o Maracatu Nação Baobab, que revolucionou o maracatu cearense e também rendeu críticas absurdas. Falavam que ele estava descaracterizando o maracatu. Ora, logo ele, iluminado com luz intensa!

OP - O que você pode falar sobre a geração manguebeat, o Chico Science juntando maracatu e hip hop e influenciando toda uma nova galera?
Aqui, você sabe que seu trabalho, em particular, está no âmago da rapaziada que usa os ritmos populares numa linguagem atual. Mas ninguém fala muito. Como é esta história do santo de casa não fazer milagres?

Ednardo - Maracatu é célula básica, uma das vertentes rítmicas da música brasileira, célula tronco, fornece a seiva para outras transformações.
Quando o pessoal do Ceará e Pernambuco utilizam estas informações, é para continuar a linha evolutiva da música brasileira, de seus ícones ancestrais à atualidade.
Desde as primeiras músicas gravadas em meus discos, existem vários maracatus, em diversas nuances: ''Terral'', ''Pavão Mysteriozo'', ''Longarinas'' (anos 70); ''Ser e Estar'', ''Ponto de Conexão'' (anos 80), em abordagens desde maracatus lentos aos acelerados.

O Chico e a valorosa geração manguebeat forneceram suas contribuições ao maracatu de Pernambuco, lembro que Ariano Suassuna criticou Science e Nação Zumbi, mas a moçada de Pernambuco gostou e depois Suassuna se rendeu à evidência.

Também vamos dizer viva a Descartes Gadelha, que antes do Science teve coragem de misturar e acelerar os ritmos e colocar o bloco na rua, vivas ao Calé Alencar, Pingo de Fortaleza, Dilson Pinheiro, pela continuidade do maracatu tradicional e pelo zelo de registros, e a todos os mestres do maracatu cearense e seus trabalhos que se estendem na esfera de preocupações sociais.

Tenho consciência do alcance das músicas que faço e seus naturais limites. Foram realizadas com objetivos amplos, mas também simples vontade de cantar. Sei que estão no âmago das novas galeras, mas não penso em alimentar expectativas em histórias de santos de casa e milagres. Sigo compondo e cantando, o restante fica por conta de vocês.



OP - No I Festival de Violeiros e Cantadores (outubro de 2004, em Quixadá e Quixeramobim), quando você subiu ao palco e começou a cantar - e olhe que você rearranjou suas composições, inclusive, o ''Pavão Mysteriozo'' - todo mundo cantou junto. Como é criar uma música que ultrapassa duas, três décadas?

Ednardo - Em shows pelo Nordeste, em Teresina, encontrei mestre Luiz Gonzaga, sorriso estampado no rosto e voz forte chamando: - Ednardo venha cá, ouvi dizer que você não está cantando ''Pavão Mysteriozo'' nos shows, faça isso não meu filho, você foi abençoado pelo povo, sucesso genuíno.
Até hoje canto ''Asa Branca'' porque o povo pede, não deixe de lado essa música, gosto muito dela e o povo também. Foi ensinamento de mestre.

No Festival de Violeiros e Cantadores, ouvi de novo os mestres (entre muitos que tenho) e coloquei no roteiro esta e outras músicas de meu repertório, também abençoadas pelo povo.
Os arranjos atuais partem principalmente da compreensão dos arranjos originais e também pela leitura de novos músicos cearenses da banda que me acompanha, confio em suas sensibilidades, são excelentes profissionais, os acordes e ritmos, tudo passa por minha concordância.

Ao constatar que ultrapassam gerações, duas, três décadas, permanecendo íntegras e significantes, penso que é porque assim foram feitas. Posso me considerar um sujeito de sorte e de forma geral querido pelo público, além do mais, minhas músicas, quando analisadas pelo povo e críticos especializados, pelo que percebo, fornecem sensação de que não fugi da raia de meu tempo e espaço e, segundo atestam, continuam servindo de faróis para muitos.

OP - A gente aqui vê você menos do que desejaria. ''Amanhã, se der o carneiro/ vou-me embora daqui pro Rio de Janeiro...''. E você foi. Bate a saudade? Como é ver o Ceará de longe? Você pensa em voltar, ou só ''em vídeo-tape''?

Ednardo - Também desejaria que nossas cidades nos vissem e ouvissem muito mais, que o foco de atenções tivesse identidades próprias, não esperasse ver ou ouvir primeiro seus artistas em outros locais, principalmente no exterior, para depois reconhecê-los como legítimos representantes de nosso povo.

A pergunta, mesmo específica e dirigida, cabe amplamente à grande parte dos artistas brasileiros. Mas as respostas, talvez, seriam mais esclarecedoras se fornecidas pelos que articulam a mídia e meios de comunicação.
Seria legal que nossos meios de comunicação, nossos governantes, tivessem orgulho de seus artistas, que são antenas da raça, e nos tratassem melhor para não sermos forçados a cada instante a dar nomes aos bois que atravessam os trilhos da música brasileira, hoje em dia mais respeitada no exterior que no Brasil.

Mas estou mais perto de minha terra que muitos que aí residem. É claro que sempre bate saudades de Fortaleza, mas como voltar pra uma cidade da qual nunca saí?

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Sustenta a Pisada!

O registro mais antigo do maracatu recua ao ano de 1711, num carnaval (à época dizia-se entrudo) em Olinda. Era o ancestral dos famosos maracatus de nação, da folia pernambucana, uma estilização dos autos de congos.
Nação aí é sinônimo de etnia ou povo africano - nação angola, nação congo, nação bantu. Do nação participam entre 30 e 50 figuras no cortejo real, começando pelo porta-estandarte, com suas vestes ao modo da corte do rei francês Luís XV.
Ao lado dele, vem a baliza, com seu requebrado, sua graça. Geralmente, uma moça. Em seguida vêm as damas do paço (isto é, as mulheres nobres que circundavam a rainha, no paço ou palácio).
Uma delas conduz a boneca chamada calunga, portadora da religiosidade e representando as entidades espirituais. Depois, outros personagens da corte, o duque e a duquesa, um casal de príncipes e uma das figuras mais importantes e mais diretamente ligadas à parte histórica que originou, depois, a estilização no auto dos congos: o embaixador.

A corte abre alas para o rei e a rainha, devidamente coroados, vestindo seus mantos de veludo rebordados de pedrarias, carregando solenes o cetro e a espada. Rei e rainha são protegidos por um imenso guarda-sol, oriundo da tradição árabe.
Para evoluir, o nação é animado por vários tambores grandes (zabumbas), médios (alfaias), caixas e taróis, ganzás e o gonguê (um só ou um par de sinos, percutidos com uma vareta de metal).
Completando o cortejo, a ala das baianas, com suas imensas saias rodadas, e os caboclos, representando as etnias indígenas, vestidos de pena e estalando pequenos arcos e flechas.
Em Pernambuco, o maracatu nação também é chamado de baque virado.
No Ceará, o cortejo do maracatu assemelha-se ao de nação pernambucano, no figural e instrumentação, mas difere por algumas características singulares, quais sejam - o rosto dos brincantes, pintado de preto, a figura do balaieiro, com o enorme cesto de frutas equilibrado na cabeça, os defumadores, aspergindo incenso para abrir os caminhos, e o triângulo de ferro, marcando o compasso.

Aqui também é fundamental a boneca, igualmente chamada de calunga. Mais recente é o maracatu rural, ou de baque solto, que nasceu nos canaviais da Zona da Mata pernambucana já em meados do século passado.
Também são conhecidos por maracatu de orquestra, por contar com um grupo de músicos que utilizam instrumentos metálicos de sopro, como os trombones, saxes e cornetas.
No figural, destaque para os caboclos de lança, portando vistosas golas terminadas por chocalhos na parte de trás, e as cabeleiras imensas de ráfia colorida. Eles costumam usar óculos espelhados e brincar com uma flor presa entre os dentes. O mestre canta a palo seco (isto é, sem acompanhamento instrumental), respondido pelo coro feminino e o troar dos chocalhos, apitos e demais instrumentos.

O canto do mestre é improvisado. Além dos metais, o cortejo é animado por gonguê, ganzá, tarol, cuíca, surdo e zabumba. Confira alguns instrumentos percussivos que fazem parte dos cortejos.

Eleuda de Carvalho e Tereza Monteiro

ABÊ - É um instrumento artesanal, feito de cabaça recoberta por uma ''saia'' de contas ou miçangas. Quando friccionadas, fazem um som que lembra a palavra xequerê, como também o instrumento é conhecido.

AGOGÔ - Instrumento de percussão em ferro, de origem africana. O nome é nagô, significando sino. O agogô também está presente nos cerimoniais do candomblé.

ALFAIA - É um tambor grande, mais alto que o zabumba mas de circunferência um pouco menor, revestido por couro de bode. Seu som grave segura o baque e repercute direto com as batidas cardíacas. É o mais orgânico dos tambores, justamente por bater no compasso do coração. É tocado com duas baquetas.

CAIXA - Tambor revestido com pele natural nas laterais. De tamanho pequeno, pende do corpo do tocador à altura do umbigo. O som produzido é intermediário entre o tarol e a alfaia. No Ceará, chama-se também caixa-de-guerra.

CAXIXI - De origem indígena, é um chocalho feito de palha trançada com a base de cabaça, cortada em forma circular e a parte superior reta, terminando com uma alça também de palha, por onde o tocador passa os dedos da mão, menos o polegar. O caxixi também é muito utilizado junto com o berimbau, na capoeira.

GONGUÉ - Ou gonguê. É composto por duas chapas de ferro fundido com aço e ligadas entre si. O instrumentista segura o gongué por um cabinho metálico e o percute com um bastãozinho de madeira.

TRIÂNGULO - Mais característico elemento percussivo do maracatu cearense, o triângulo é feito com uma peça de ferro larga e pesada de chassi de caminhão. Ao contrário dos triângulos convencionais, seu som é grave, profundo, solene. Na hora em que o maracatu aponta na avenida, é justamente a poderosa batida no triângulo que faz todos os olhos se voltarem na sua direção. Embora com as inovações dos últimos anos, que aceleraram o ritmo, até os anos 80 mais compassado, o triângulo ou simplesmente ferro mantém-se como a marca da originalidade neste cortejo que nasceu longe, na África, lá no século 16.


Batendo tambor

A levada do bumbo e a marcação do ferro, que caracterizam o maracatu cearense, estão no balaio sonoro de três gerações que fazem música em Fortaleza, desde os anos 70.

Desde os anos 70, com o Pessoal do Ceará - e especialmente com Ednardo - o maracatu escapoliu dos três dias de folia para contribuir e singularizar a música feita por estas bandas.
A geração 80 teve uma participação fundamental nesta levada.
Desta década, o mais ligado à tradição e, em particular, ao maracatu, é Carlos Alberto Alencar, o Calé.
Através do selo Equatorial (Nossa História em Música e Letra), o artista vem resgatando valores de há muito esquecidos, como Lauro Maia, que criou o balancê junto com o violonista Aleardo Freitas. Via Equatorial, Calé Alencar lançou uma caixinha com cartões postais de fotografias dos maracatus da década de 50. Outro trabalho realizado no formato cartões apresenta o cortejo talhado no taco da xilogravura (parte deles ilustra esta edição). ''Tô inaugurando uma nova etapa desta minha participação no mundo do maracatu.

Estamos lançando este ano o Nação Fortaleza, que vai se apresentar pela primeira vez.
Não é apenas um trabalho pra desfile, mas com a consciência de um grupo de dança de maracatu, em todos os vetores que isto pode ser compreendido, a cidadania, o exercício da arte, da capacitação, do design, do artesanato, a costura, pintura, a musicalização, a compreensão da dança e da sua história, origem e evolução'', conta Calé, atual presidente da Federação das Agremiações Carnavalescas do Ceará.

O Nação Fortaleza, formado basicamente por crianças e jovens, traz um ''batuque bastante singular'', diz Calé. ''Fizemos o desenho das caixas, dos surdos e bumbos, dos chocalhos. Conservamos a batida dos ferros. É uma contribuição minha a uma identidade rítmica do maracatu Nação Fortaleza, inspirado nos ferros do Az de Espadas, que surgiu aí no início do anos 50.
Mas dei mais valocidade ao batuque, inclui ganzás. No tema da nossa loa, pensamos em realçar a figura da rainha Ginga.
Ela é símbolo de resistência, de heroísmo, de bravura, da mulher guerreira, personificada na rainha do maracatu. Na loa 'Ginga, rainha da gente', é como se chamássemos a rainha pra ver o figural que vai homenageá-la''.

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Nota - O material desta publicação é bastante extenso e ilustrado com fotos e desenhos de xilogravuras, mereceu um caderno inteiro do Jornal O POVO de Fortaleza. Para os que quiserem acessar o teor completo, a melhor forma é entrar em contato com com o setor deste jornal, responsável pelo armazenamento destas informações.
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Cumplicidade nas Políticas Culturais

Victor Hugo, o escritor francês, traduziu para a sua língua a obra do maior dramaturgo inglês e, de arremate, o homenageou com o mais poético e sensível ensaio humanístico que já tive a oportunidade de ler: Shakespeare. Um gênio reconhecendo o outro.

Assim procedendo, o autor de ´Os Miseráveis´ mostrou-se coerente com um dos pensamentos desenvolvidos no escrito, ao comparar as dinâmicas de avanço das ciências e das artes, segundo o que podia observar na metade final dos anos 1800.

Para ele, a lógica de progresso das ciências estaria na superação; a das artes na acumulação. Queria dizer: um cientista se firma quando desconstitui o que outro elaborou, como aconteceu gritantemente com Copérnico e Ptolomeu, quando aquele, desvelando adequadamente o sistema solar, implodiu a tese de que a Terra era o centro do universo.

No âmbito das artes, este sentimento de destruição do anterior, se existe, não tem cabimento, porque, por exemplo, o florescimento de Shakespeare não reclamou a superação de seu contemporâneo Cervantes, de seu antecedente Sófocles ou de seu póstero Machado de Assis.

O campo da cultura é, por excelência, o ambiente da pluralidade e do acúmulo.
Na atualidade de nosso país, os valores referidos, aliás, foram formalmente adotados pela Constituição da República, não apenas para as artes, mas para todo o campo cultural, ao assegurar ´a todos´, ´aos grupos participantes do processo civilizatório nacional´, ´aos diferentes segmentos étnicos´, o pleno exercício dos direitos culturais que, em considerável dimensão, são de responsabilidade do Estado, o qual deve atuar, no cumprimento de seu papel, em ´colaboração com a comunidade´.

Vê-se que Estado, sociedade e comunidade são responsáveis solidários pelas políticas públicas de cultura, merecendo esclarecimento a diferença entre as duas últimas: sociedade como o conjunto de todos os indivíduos; comunidade como grupo que possui laços de proximidade e integração, incluindo relações de afeto.

A Constituição ao integrar os três atores referidos no processo de promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro ensejou uma revolução democratizante no âmbito da cultura, historicamente admitido como espaço reservado, na melhor das hipóteses, à aristocracia pensante e intelectual do país.

Mas o sentido da integração em apreço extrapola em muito a simples técnica da decisão pelo critério da maioria, que é o ícone mais simples e acessível do regime democrático. Estado/Sociedade/Comunidade(s) dividem não apenas poderes, mas responsabilidades, pelos rumos da cultura; fiscalizam-se mutuamente para que as práticas culturais cumpram os objetivos de aprimorar a alma, as práticas e os valores humanos, questionem as coisas postas e proponham novos rumos, quando necessário.

As políticas públicas de cultura, seguindo o raciocínio, não podem ser apenas resultado de planos de governos, mesmo que investidos pelo voto popular, mas devem se submeter a uma dupla legitimidade de caráter constante: a dos anseios gerais da sociedade e das comunidades especificamente afetadas.
Não se trata apenas de atender as aspirações declaradas ou colhidas em função de técnicas de marketing, mas as que possibilitam ao cidadão e às coletividades situarem-se historicamente, vivendo o aqui e o agora e tendo, ao mesmo tempo, referenciais do passado e responsabilidades para com o futuro.

Muitas autoridades responsáveis pela gestão cultural não têm este entendimento, e disto resulta que a partir de seus gabinetes lançam planos, projetos e idéias de ações, preocupados, muitas vezes, apenas em deixar uma marca pessoal. Ofertam, não raro, aquilo de que já se dispõe, sob novo rótulo.
Buscam aceitação por meio de práticas feéricas, repleta de luzes artificiais, repetidoras da política do pão e circo, e até do circo sem pão, muito apropriada a manter as coisas do jeito que sempre estiveram. Tudo isso geralmente à custa da omissão com as obrigações outras, inclusive as cotidianas e indispensáveis, como a de conservação de estruturas e acervos culturais historicamente consolidados.
Quem assim procede, comete a inconstitucionalidade de deixar de ouvir e integrar os destinatários e co-responsáveis pelas ações culturais.

E mais que desrespeitar um formalismo jurídico, abre mão de suas cumplicidades em favor da luta pela concretização dos planos traçados, ficando frequentemente assemelhado àquele que faz pregações no deserto.As políticas culturais, historicamente praticadas nos moldes das ciências concebidas no século XIX, vêm, portanto, regendo-se pelo critério da exclusão, seja das práticas antecedentes, seja dos demais legitimados sociais.

Os gestores culturais prestariam grande serviço aos seus administrados se observassem a sugestão de Victor Hugo de homenagem às lógicas da pluralidade e do acúmulo, que fazem a regência e a riqueza das expressões culturais.


HUMBERTO CUNHA

Especial para o Caderno 3
O autor é professor de Direito Constitucional e Direitos Culturais nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da Unifor. Advogado da União.

Jornal Diário do Nordeste - 15 de Fevereiro de 2009
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=615278

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Maracatu Estrela Brilhante



Artigo escrito por Ednardo para o Jornal O Povo - Fortaleza - Ceará, publicado em parte condensada em 2005, e agora enviado na íntegra em 2009 pelo autor.





Zeca Zines publica com prazer esta contribuição de Ednardo sobre o Maracatu Cearense.






MARACATU ESTRELA BRILHANTE
Ednardo

Maracatu Estrela Brilhante
Maracatu o teu brilho errante
Gamela da nossa mistura
Tão linda tão mista e tão pura
Maracatu

Garra maracá já guerreiro
Batuque ferro e ganzá
A flexa cravada no céu brasileiro
Infinitamente Cantar
Cantar
Cantar
... ... ...

Uma vez, quando menino, ví o Maracatu Estrela Brilhante, e nunca mais esquecí sua energia e força, faiscante ele veio pela rua. Naquele tempo todos os Maracatús se reunião no Parque da Liberdade, também chamado Parque da Criança, no centro de Fortaleza, e percorriam a chamada "Maior Rua do Mundo", que começa na Beira da Praia e em linha reta passa pela Cidade e se transforma numa estrada e adentra o interior do Estado de todos nós.

E eu do alto dos cinco anos de idade me perguntei - Que coisa linda é esta?
E saí pela rua, entre braços e pernas dos adultos.
Eu, no estado de pessoa acompanhando o ritmo e música do Maracatu.

A visão pra mim, coisa mágica, os lampiões que abrem o desfile e que preservam o espaço sutil e perfeitamente delimitado do bloco, a ala dos indios, com suas vestimentas de penas coloridas seus Cantos Indígenas e rítmos marcados pelos maracás e estalar das cordas bramindo contra os arcos, perfeitamente entrosados com os tambores, lançando as setas imaginárias em direção ao infinito que na minha mente de criança continua a existir.

Logo a seguir os pagés, os morubixáuas, reis de nações, as índias suas companheiras fiéis, rainhas, príncipes e princesas, e tudo isto verdadeiro, e cantando, em harmonia com o canto dos negros que na ala seguinte entoam os Cantos Afros, o espaço se abre com a presença do Pagé junto ao Rei e Rainha, a corte Real, envolta em luzes de candelabros, feitos de rústicos lampiões envoltos em fino pano vermelho, e grandes abanos coloridos que sinalizam sutilmente o espaço limítrofe entre os participantes do bloco e os assistentes.

Em seguida, os Tambores, que a gente já escutava em suas repercussões, ressoando nas paredes das casas de Fortaleza à mais de trezentos metros de distância, junto as marcações do contra tempo que no Maracatú do Ceará é especial pela presença do Ferro, ( um triângulo especialmente construído para esta finalidade do repinique no grau mais amplo das tonalidades metálicas), depois mais perto o xik-xik dos Ganzás, os Tambores- Grandes e médios, as caixas, fazendo o Rá-Tá-Tá-Tá - da puxada, e logo em seguida o BOMM do Baque do Maracatu.

E depois compreendí que aquela força tinha mais de 100 Anos de Solidão, Macondo é perto de Fortaleza, do Maracatú, quem já percorreu a excelente viagem, vai entender o que estou descrevendo.

E eu estava lá, e quem é criança, como eu, continua sabendo que todas as explicações não bastam, os Reis e Rainhas são perenes em suas sutis fragilidades, e em seus Arquétipos, são bastantes fortes. A explicação de que eram a representação da Côrte Européia, com os Índios e os Negros, cada qual colocados "em seus devidos lugares", parece equívoco, diante de tantas evidências.

A alma do Maracatu, tem talvez o tempo da civilização brasileira, é fruto da vivência, da sabedoria, do sofrimento, e também da alegria e beleza da saga humana, em nossa terra.

O Maracatu, está colocado como um dos prismas de visão, em uma parte de minhas músicas sobre este tema, ritmo e identidade cultural, traduzidas para o universo artístico, em um espaço todo especial.

Especial porque o Maracatú do Ceará é único nesta forma no Brasil, suas raízes mais longínquas vêm diretamente dos arquétipos e dos arcanos culturais de nossa miscigenação.

Das terras então (naquelas eras) recém "descobertas" do Brasil, a junção com as Nações Indígenas Brasileiras, principalmente do Nordeste: Tabajaras, Tremembés, Carirís, Pitiguaras, entre muitas outras; Da África, as Nações : Nagô, Bantu, Ijexá, Congo, e também muitas outras; Dos Europeus em suas diversas Nações, castas e extratificações sócio-culturais, Portugueses, Franceses, Espanhóis, Holandeses.

O Conceito Ritual da Civilização dos habitantes desta Terra, (chamados de índios, equívoco do cálculo dos navegadores, quando ainda se pensava que o Brasil era a Índia ou uma Ilha), incluia o respeito pelo encontro entre as raças dos povos que aquí aportavam.

Ao se encontrar com a consciência do povo africano, sequestrado como escravos pelos europeus, (e também vendidos aos brancos pelos próprios africanos em guerras tribais), fez aflorar a consciência deste povo refém, em suas purezas e custumes, o Reino daquí, ainda não tinha a informação do que havia acontecido nos Reinos vizinhos das Civilizações Maia e Azteca, entre outras.

MARACATU AZ DE ESPADA

Existem registros nos escritos originais de Hans Staden e Jean de Lery - NAVIGATIO IN BRASILIAM AMERICÆ, e VIAGEM À TERRA DO BRASIL que relata o tráfico de selvagens brasileiros em navios franceses, para serem vendidos como escravos aos Mouros brancos da Barbaria, como também faziam os navios portugueses com o aval do Rei de Portugal para este tipo de tráfico.

Também existem registros da contra partida onde as Nações ao Sul do Brasil praticavam a antropofagia- aquí incluída num contexto de guerra e vigança, com seus rituais de comer a carne do inimigo para ganhar suas forças:

- "Ndê t'mberaba shermiurama mae amboe" (A tí sucedam todas as desgraças, minha comida)
- "De kange yuca cypota kurine" (Eu quero ainda hoje cortar a tua cabeça)
- "Che y anama pepike ki chaicu" (Para vingar a morte dos meus amigos, estou aquí)
- "Yande sso che mocken sera quora ossorime rire (Tua carne será hoje, antes que o sol entre, o meu assado).

Com gritos de guerra bradavam os índios, e se prisioneiros fossem feitos, continuavam o ritual, onde "aquele que deve matar", pega a clava e diz - "Aqui estou, quero te matar, porque os teus também mataram a muitos dos meus amigos, devorando-os" e segundo o relato o outro, responde: - "Depois de morto, tenho ainda muitos amigos que me vingarão"

Tudo isso regado pela bebida feita pelas virgens da tribo ao mastigarem a raiz da maniva (mandioca), após fervida, que em contato com a saliva humana gera a fermentação - depositada em um pote e após o tempo de curagem e diluição com água é bebida por todos os que vão comer a carne do inimigo.

Nota - Esta versão parece ser a visão européia da época sobre os conflitos gerais ocasionados pelo estado guerreiro então estabelecido entre as partes, levando em conta os ânimos daqueles momentos, lembra também um pouco a sintomática justificativa para o extermínio dos contrários, a inquisição queimava bruxas, as cruzadas matavam os infiéis, as virgens, seus antecedentes e ascendentes, talvez tivessem o mesmo destino comum, de serem em seguida, também devorados pela vingança futura.

CAUIM
Ednardo

Rainha Preta do Maracatu
Nesse teu rosto de falso negrume
Morre de gozo da renda do sol
Na renda feita pelos bilros d'água
Desse véu de noiva Bica do Ipú

E eu um índio pronto para as flexas
Dos arcos tesos de uma caçada incerta
Monto no sopro do Aracatí
Tonto de espanto de amor e cauim
Sou nau sem rumo
Em teu ardor imerso
... ... ...

Depois vem a síndrome do conquistador se sentir exilado de sua terra natal, após território ocupado, ter que continuar residindo e resistindo em território alheio, o que também significa estabelecer vínculos integral com tudo, natureza, nativos, escravos, povo, Reis e Rainhas depostos, e com seus próprios propósitos de conquista.

Nesta nova ordem estabelecida em uma terra, que inicialmente seria o paraíso terrestre e que a partir de então mostra o seu lado selvagem, o Enigma se estabelece e esta Terra, somente será de todos, após a decifração: A Junção das Raças e as distribuição das riquezas entre as mesmas, conforme seus trabalhos.

13 DE MAIO - Libertação de Que?

Ou então coberta pelo manto de uma realeza equivocada que aquí se instalava, junto aos povos viajantes, em suas naves de madeira, (a tecnologia de ponta daquela época), e no caldeirão explosivo da carga humana dos escravos, (indios, negros e brancos), alijados de suas próprias realezas, esta Terra seria o eterno campo de batalhas inglórias, sem vencedor ou vencido, ou guardaria em suas entranhas o absurdo de se viver em meio a fartura e não se ter comida, viver em terras de dimensões continentais e não se ter espaço e liberdade para ver os filhos crescerem, e onde as árvores não dariam sombras nem frutos, os caminhos utilizados para levar nada à muitos e tudo à poucos, e as mãos que construíssem as habitações e fortificações do invasor, não tivessem como abrir a porta de sua própria morada, pois estariam ocupadas sempre em produzir riquezas e garimpar o ouro, para o pagamento da conta da empreitada da conquista de novas terras, irônica e cruel realidade dos escravos de então.

Como se a força dos elementos da natureza tivessem mudado das mãos do Superior e a Luz não mais banhasse as Almas.

É do conhecimento de todos, por maior que seja a maquiagem histórica, o "desconhecimento" que até os tempos de agora nos empurram como fatos oficiais nos bancos das escolas, que Nações Inteiras com seus "Reis, Rainhas e Povos", ao longo deste tempo, foram manietados e subjugados pelas forças das armas, da grana, do poderio da tecnologia. Dizem os sábios que: quem não aprende com o passado, muitas vezes se vê colocado em situações idênticas no presente ou futuro.

Assim, todos vieram, e chegaram com seus custumes, religiões, leis, e as extratificações de sociedade, dividindo os povos, às custas das "pacificações" que na verdade eram genocídios. Não houve o convite para uma participação harmônica, cada qual, com suas sabedorias e civilizações da inauguração de uma nova casa, a América (do Norte e/ou do Sul).

O extermínio de indios e negros não é somente filme de faroeste e de tarzan, onde o epicentro da ação, está em épocas passadas no cenário do oeste norte americano, ou das savanas africanas, isto sem esquecer as indias orientais, ocidentais e acidentais, onde todos os mocinhos, matavam os bandidos e terminavam o orgásmico e sangrento festim aos beijos, no final feliz do "the end" do filme.

A selva geral se deu e se dá no Brasil também, a época é variável , 1500 à 1900, e devemos todos nós querermos uma outra realidade diferente para depois dos anos 2000.

O Que têm esta História a ver com o Maracatu? - O MARACATU é tudo isto ai junto.

A hospitalidade nordestina reconhecida como um dos pontos fortes dos traços de nossos custumes, marcadamente vem de nossos indios, que receberam os brancos europeus e os negros africanos, que por sua vez também devem ter recebido a civilização branca com a altivez natural de habitantes legítimos destas regiões, e também em suas consciências cósmicas, dirigidas para o destino atual do Brasil que ao entrar neste terceiro milênio, se mostra como o verdadeiro "melting point" da miscigenação racial de todo o planeta.

Hoje em dia, já temos, nossos japoneses, nossos chineses, nossos alemães, nossos ingleses, nossos franceses, nossos holandeses, nossos americanos do norte e do sul, nossos espanhois, nossos portugueses, nossos mouros, nossos muçulmanos, nossos tuaregs, nossos indús, nossos africanos, nossos bárbaros e nossos doces, etc., etc., enfim somos os representantes mais ricos em termos desta mistura humana, por favor não esqueçam os indios, pois realizamos o projeto talvez mais amplo da humanidade.

A saudação usual da Hospitalidade entre as nações de nossos indios e as outras nações que chegavam após vários períodos e fases, tinham inicialmente o espanto e respeitosa aproximação, depois escravizados, o da revolta e guerra, e ao histórico domínio pela superioridade das armas, riquezas exploradas, movimentação e tecnologia, e etc., E inicia-se a fusão destas raças , e o nascimento do ser brasileiro.

-"Ere iobê" (Tu vieste?) dizia o Cacique Morubixáua da Nação visitada.
-"Pa-aiotu" (Vim, sim) dizia o o representante da Nação visitante.
-"Auge-be" (Bem dito) respondia o "Rei e Rainha e o Povo" da nação visitada. E os visitantes ficavam à vontade, com as palavras de recepção emitidas que valia como: bem vindo, ou diz bem o que tu fala, e nós te recebemos.

Não deve passar desapercebido, nem aos olhos mais desatentos, o simbologismo do Maracatu em suas cargas conceituais: Artes plásticas, roupas e adereços, pinturas; Expressões Corporais, diversos modos de danças, posturas representativas; Ritmos, Músicas, Vocabulários. E como espetáculo transcendental de nossa cultura viva.

A realidade do Teatro, somente para citar alguns, o Teatro Kabuki (japonês) pela utilização das máscaras que define expressões estáticas e posturas miméticas, o Grego quando um homem representa personagem mulher, a Rainha, (tradição do Maracatú do Ceará) e ainda incorporando as raízes negras, brancas e indias, e o Teatro Romano, por sua tradição de encenação pública e itinerante, sujeitas a modificações conforme a platéia, como nas Arenas.

Se todos estes pontos de identificação do Maracatu, fosse fruto de um produto artístico racionalizado e realizado grupalmente, com o tempo definido de uma companhia teatral, ou seus sucessores, já seria um grande fato. Mas ao constatarmos que esta função existe ao longo de décadas e mais décadas, (os estudiosos podem relatar sua durabilidade, especificidade e importância), e além de tudo, levada em frente por grupos populares, em expontânea e transcendental informações de arquétipos estrutural de nossa cultura , é óbvio e ululante, "que eles, somos nós".

Com suas alas de indios, negros e brancos, a abertura de leques de informações, a representação das nações com seus Reis e Rainhas, que significativamente podem ser representados simbólicamente por elementos de qualquer raça, ao pintarem seus rostos com a tinta preta , a fisionomia é anulado teatralmente pela máscara, e com ela, qualquer traço de identificação racial, permanecendo no entanto, qual o negativo de uma fotografia, a imagem íntegra de um ser humano no seu mais alto positivo. Por isto o sentido do Re-Ligari que o mesmo possui.

O Ritmo é Hipnótico, centraliza o estado natural das pessoas, a Música é composta por unidades Mântricas, de Auto-Concentração Interior.

A palavra é utilizada neste Ritmo e nesta Música com a finalidade mística e religiosa de fazer o Bem, e seus emitentes, devem estar aptos a concretizá-las em ações de equilíbrio com outras entidades e forças.

MARACATU AZ DE OURO

Curiosamente, o Maracatu desfila também durante o Carnaval, e seu ritmo, longe de ter os apelos frenéticos das bandas de frevos, escolas de samba, e agora dos carros de axé músic, também consegue arrastar multidões aos seus desfiles, similar fenômeno também existe na Bahia, com os afoxés, só que aquí no Ceará, os maracatus estão sendo incompreensívelmente colocados em escaninhos folclóricos, e sendo distanciados da festa popular por todas as formas e meios, o que é um gritante equívoco, como resultado eles se tornam progressivamente longínquos da identificação das novas gerações cearenses, que perdem este precioso referencial próprio, para em seu lugar, adotarem o referencial cultural de outras regiões.

Isto é no mínimo uma política cultural suicida, em relação à autonomia cultural, artística e de custumes popular que está sendo praticada contra o sincretismo de uma manifestação espontânea e abrangente, sem o aval do povo cearense.
A consciência, do conteúdo desta resistência, é fundamental para que possamos conhecermos a nós mesmos.

Esta realidade é tão estranha e contudente, que talvez existissem parâmetros de comparações, se pudermos imaginar alguém pensando em acabar, ou colocar em gavetas classificatórias menores, distanciando de festas populares, manifestações como: os Afoxés na Bahia, as Escolas de Samba no Rio de Janeiro, os Blocos de Frevo em Pernambuco, os Bumba Boi do Maranhão, por exemplo.

O raciocínio de que o Maracatu, possui um andamento muito diferente do que alguns elegem por conta própria para o padrão do carnaval cearense, é no mínimo, ingênuo, desinformado, ou interessado em limpar espaços em nossa própria terra, para que depois a monocultura sistemática e controlada seja realizada.

Queremos ver e saber de tudo, não somos xenófobos, gostamos da diversificação e democracia sonora, visual, da informação das várias maneiras de ser brasileiro, mas também estamos atentos as tentativas de nos tornarem apenas consumidores do modelo dos outros, e a preservação de todos os prismas de nossa identidade é vital para que possamos ser e estar.

SER E ESTAR
Ednardo

O imenso brilho do sol que explodiu nesse céu
Fotografou você
Sua sombra no ar a bailar, virou um louco maracatú
Sua dança a dançar, babel de som da cidade
Gente é preciso se dar valor, para ser e estar
Nesse rio real da existência
Além da dor, mêdo, violência
Existe o prazer de querer e ser querido
Revelar o precioso ser, habitante em nós
Vestindo o azul do espaço, e rasgando a mordaça da voz
Sonhar plural, acreditar estar com todos
Na solitária sina, solidariedade ao povo
De qualquer lugar, múltipla fantasia
Tudo é, foi, e será, escrito está
Solar expressso solar, tão cheio de gente a viver
Desabrochando aquí, no chão do planeta
Uma aura de um ôvo de luz, daonde nasce outra terra
Não fazendo de sí alimento, dos senhores da guerra
Olhar pro Aquarius no céu, vê se vê
Vê se vem, já não dá pra esperar

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Foto Para Pensar


Foto ganhadora do primeiro lugar na categoria "Notícias Gerais" do World Press Photo of the Year. De autoria do brasileiro Luiz Vasconcelos, do jornal "A Crítica", a imagem mostra uma mulher tentando impedir o despejo de seu povoado em Manaus, no Brasil, dia 10 de março de 2008

Luiz Vasconcelos/A Crítica/Zuma Press/EFE