sexta-feira, 23 de maio de 2008

Dois Morros - Ricardo Kelmer


Minha mão vacilou quando o seio dela surgiu, meio à mostra...

Não, não, melhor começar pelo morro, o outro. Vamos lá.

No início era o simples, o natural.
Não era chique nem tinha futuro. No alto do morro só umas casinhas pequenas e um espaço de grama e areia, uns arbustos, um pé de pau acolá.
Era 1984 e eu garoto fuçador de recantos descobria o mirante natural do Morro Santa Terezinha e subia lá pra tocar violão com os amigos, luarada, fogueirinha de papel, namorar... A gente sentava na grama, o litrão de rum no centro da roda.
Os namorados iam pro carro, mais afastado, economizar o motel.
Quem se apertava fazia xixi na ribanceira.
Ir aonde ninguém havia ido, era excitante. Sem medo de assalto, sem pensar no tempo, a vida era agora.

Um dia, agora sim, um dia os seios dela surgiram.

Aonde você tá me levando?, Isabella perguntou provocante. O fusca véi subia o morro, se peidando todo, serpenteando pelas ruazinhas, as casinhas simples, o povo na calçada, o charme suburbano. Pro céu, minha linda... Não, falei isso não, só tive vontade. Mas na última curva pedi: fecha o olho.
Quando ela abriu, era o postal noturno da cidade, em cima o céu piscante de estrelas e lá embaixo os prédios, as luzes, o neon dos letreiros coloridos. Ela boba: como você descobriu isso? Eu mais bobo: e você, como eu descobri você?
Aí a tiazinha botou umas cervejas em sua geladeira, uns refrigerantes. A gente ia lá na casinha dela e batia palma. Ela levantava do sofá onde via TV e, sonolenta, trazia uma cerva e uns copinhos.
Quanto é, tia? É só tanto. Tem mais gelada não? Tem não, meu fi, a geladeira tá desmantelada. A gente pagava e ela dizia: pode deixar os cascos lá que depois eu pego. E aconselhava as meninas: quando vier de novo, fia, traz um agasalho, mode o vento frio.

Um dia a cerveja veio com isopor. Estava melhorando. Outra noite cheguei lá e tomei um susto: a tia espalhara umas mesinhas, umas cadeiras de reclinar. Mode as menina não sujar o vestido, né, meu fi?
Aí o vizinho começou a vender cerveja também. Já dava pra escolher se ficava na tia ou no tio, que chique. Depois já dava pra tomar caipirinha, beliscar um peixinho frito com tomate e cebola.

O movimento aumentou e a filharada da tia veio ajudar. O mirante lotava, às vezes nem lugar pra sentar, um imenso bar ao ar livre, gente interessante, sempre aparecia um violão, um Pink Floyd no toca-fita... Tudo ainda simples e delicioso.

O tempo ainda era agora.
Perdida entre beijos incontidos e abraços descontrolados, minha mão percorreu as curvas do copo dela, serpenteando, errando aqui, acertando mais na frente.
Quando o seio dela finalmente surgiu, meio à mostra na blusa entreaberta, minha mão vacilou. Ela então disse: fecha os olhos. Quando abri, a paisagem nua de seus seios reluzia à minha frente, dois morros a conquistar.
E lá fui eu, garoto fuçador de recantos, legítimo ocupador do morro.
Nos anos 90 os moradores venderam suas casas pros empresários, tudo de olho no bolo que crescia. Todo mês abria bar, pastelaria, restaurante.
Virou chique subir o morro. Gente bacana bem vestida, turista tirando foto. Música ao vivo, restaurante limpinho, artesanato, peixe na telha. O progresso invadiu o morro com alvará.
Mas... havia algo estranho.
Pescadores e rendeiras agora eram comerciantes. Não havia lugar pra tanto automóvel. O barulho incomodava os moradores.
Menina nova alugava o corpo magrinho nas quebradas da noite. Garoto trazia cocaína pro motorista.
E a tal da urbanização asfaltou as ruazinhas e jogou uma praça feia por cima da grama. Reivindicando seu pedaço do bolo, a violência também subiu o morro, claro.
Roubos, assaltos, mortes.
Os empresários resistiram, se organizaram, clamaram por segurança. Mas ela, mouca, não escutou.
E assim a gente bacana desceu o morro e não voltou mais. O bolo murchou. E o futuro se foi, deixando o gosto bom do que devia ter ficado só no agora.

O morro não é mais chique, Isabella, mas ainda está lá.
E eu queria que você soubesse que aquela noite também, continua no mesmo lugar, sem amanhecer, seus seios em minhas mãos, dois morros conquistados, eu turista já pensando em voltar.
Tudo está lá ainda, meu nome em sua boca, eu errando e acertando as ruas de seu corpo, indo aonde ninguém fora.
Nossa história ainda se conta lá em cima, na grama, suburbana, pegando cerveja na tiazinha. Nossa história, juvenil, desmantelada e urgente, mode a hora.
Com tomate e cebola. No mirante perfeito do nós dois agora.


Ricardo Kelmer é escritor, letrista e roteirista cearense e mora em São Paulo,
Coordena a Oficina On-Line de Roteiro de Sitcom (sitcomonline.blogspot.com), tem um site pessoal (http://www.ricardokelmer.net/) e escreve o blog Kelmer Para Mulheres (kelmerparamulheres.blogspot.com)

Fonte: http://www.opovo.com.br/colunas/kelmericas/791098.html

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