quarta-feira, 26 de março de 2008

Cordel - Entre Literaturas


O cordelista cearense Klévisson Viana volta a passear pela literatura clássica, em adaptação de ´Os Miseráveis´, do francês Victor Hugo.
Poucos gêneros literários se viram cercados de tantas imagens falsas como a arte do cordel. Uma das principais expressões da literatura popular (na falta de uma definição mais precisa), o cordel passa longe de se restringir ao estereótipo do folheto de impressão rústica, com um xilogravura na capa e um conteúdo em metrificações falando dos costumes das camadas pobres do Nordeste.


“Os Miseráveis”, adaptação do cearense Klévisson Viana para o clássico homônimo de Victor Hugo, é um exemplo daquilo que o cordel é atualmente. O livro abre a coleção Clássicos em Cordel, da editora paulista Nova Alexandria, ao lado de outra adaptação do autor francês - “O corcunda de Notre-Dame”, história pinçada do livro “Paris de Notre-Dame” e transposta para o sertão nordestino pelo poeta alagoano João Gomes de Sá.

Dirigida pelo também cordelista Marco Haurélio, a coleção se propõe a transformar em prática sistemática a adaptação de grandes obras da literatura mundial para a linguagem do cordel, observada aqui e acolá ao longo da trajetória do cordel.

A obra traz diversos elementos e características que rompem a imagem engessada que se costuma ter do cordel. Primeiro não se trata de um folheto. A editora optou pelo formato livro. As ilustrações não foram feitas a partir de xilogravuras, mas de desenhos da dupla Murilo e Cintia que imitam o talhe da gravura.
No entanto, é principalmente na maneira de narrar que esta versão surpreende. Ao invés de trabalhar como uma narrativa linear e direta, Klévisson preferiu adicionar elementos de suspense à trama.

Fidelidade

Vendo o grosso volume de “Os Miseráveis” (um romance que ultrapassa as mil páginas em qualquer edição), é possível imaginar o trabalho de traduzir a obra para 36 páginas, em verso.

“Nesse tipo de trabalho, não consigo fazer muitas mudanças. Acho que é respeito pela obra do outro”, explica Klévisson. O cordelista afirma que centrou sua versão em ações mais expressivas dos cinco personagens que formam o núcleo central do romance. “Praticamente todos os secundários ficaram de fora.
Se fosse adaptar tudo, todas as tramas que aparece, não ia ter estrofe no mundo que desse vencimento. Você não pode cansar o leitor”, conta o poeta popular.“‘Os Miseráveis’ era o único livro que não estava na lista das obras que editora pretendia editar.

Entrou por sugestão minha, que já queria adaptar o romance e que não queria entregar a eles a reedição do ‘Dom Quixote’”, releva Klévisson, fazendo referência à sua primeira adaptação literária. Klévisson pretende lançar, ainda este ano, uma nova edição de seu “Dom Quixote”, acompanhado de um CD com declamações.

Releituras apaixonadas“As aventuras de Dom Quixote em versos de cordel” foi lançado em 2005. Impresso em dimensões que pouco lembram o folheto do cordel (21 x 29,7 cm), o livro lembrava um álbum em quadrinhos. Formato este com o qual Klévisson trabalhou duas vezes, no premiado “Lampião” e “A moça que namorou com o bode” - este último, adaptação do cordel de seu irmão, Arievaldo Lima.

Com “Os Miseráveis” e a futura reedição do “Quixote” pronta para ser publicada, Klévisson continua a trabalhar no campo das adaptações literárias. Mais uma vez é o cordel que fornece o texto base.
“Já está finalizada, para ser lançado este ano, uma adaptação em quadrinhos de ‘A batalha de Oliveiros com Ferrabraz’, do famoso Leandro Gomes de Barros. É um trabalho a quatro mãos, feito em parceria com o ilustrador Eduardo Azevedo”, revela Klévisson. O livro marca os 90 anos de morte do autor do cordel e deve ser lançado na Bienal do Livro, que acontece em novembro.

O desafio da adaptação

Herdeira da oralidade, a literatura de cordel é uma arte, por natureza, intertextual. Seus temas têm origem em fontes diversas, como os causos que “o povo conta”, lendas, piadas, notícias da imprensa e outras obras literárias.
São bem conhecidas as experiências de adaptação de romances da tradição “erudita” para os versos populares.
João Martins de Athayde (1880 - 1959), poeta-editor paraibano, verteu “A Dama das Camélias”, de Alexandre Dumas, e “Romeu e Julieta”, de Shakespeare; seu conterrâneo Manoel D´Almeida Filho, “Gabriela Cravo & Canela”, de Jorge Amado. Para ficar em uns poucos exemplos. A idéia da coleção “Clássicos em Cordel”, portanto, não é nova.

Mas tem que enfrentar desafios dos novos tempos.“Nem todo poeta de cordel é romancista”, explica o poeta baiano Marco Haurélio, coordenador da coleção. Segundo ele, a grande maioria dos poetas populares atualmente se dedica ao chamado “cordel de ocasião” - tratando de temas que estão na pauta da discussão pública, como a ecologia e a política.“Nem todos escrevem neste formato. Mas conseguimos um bom número de poetas e já temos 17 obras prontas para serem lançadas”, comemora. Ao todo, a coleção deve ter cerca de 30 obras clássicas. Entre adaptações, trabalhos de cearenses como Rouxinol do Rinaré.
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Matéria publicada no Jornal Diário do Nordeste - 26 Março 2008

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