Procurando uma forma de presentear os leitores deste modesto, porém sincero blog, escolhi este texto da escritora Natércia Pontes a qual admiro.
Natércia, além de seus dotes mais que comprovados nas artes literárias, é filha do grande filósofo e compositor cearense Augusto Pontes.
Natércia, além de seus dotes mais que comprovados nas artes literárias, é filha do grande filósofo e compositor cearense Augusto Pontes.
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O Presente de Paulo
Natércia Pontes especial para O POVO19 Dez 2009 - 17h49min
Paulo já havia me dito não gostar de presentes. E não importa se são de Natal ou aniversário. Um presente para Paulo sempre se converterá em tormenta. A lógica dele é bastante simples: uma vez recebidos os presentes, ele estaria obrigatoriamente incumbido de retribuir a graça para cada donatário.
E mesmo que Paulo não seja muito adepto à gastança, o motivo do incômodo não está ligado aos bolsos, mas ao medo de errar. Paulo cultiva o perfeccionismo como planta. Nobre, conciliador, companheiro.
Colhe os frutos de sua probidade na profissão, nas relações com os amigos e a família. Todos o têm com valorosa estima. Daí parte o seu peculiar ponto de vista: a inutilidade de presentear alguém.
Presentes, para ele, são sucedâneos de sentimentos nobres. Neste sentindo, um presente para Paulo perde a significação: "Por que materializar o afeto se ele é tão claro?".
Além do que, a possibilidade de errar o gosto, o cheiro, a cor, o número etc. lhe provoca ondas turvas de preocupação.
Uma vez errou com a própria mãe. Por impulso, ou uma culpa exótica, que jamais lhe ocorrera, comprou uma sandália dois números maior que o pé dela. Era seu aniversário, e ela, que sempre fora tão dedicada e companheira, jamais havia recebido mais que um abraço do filho — além, claro, da gratidão e do respeito irrestritos.
Neste dia, surpreendido pela chuva, Paulo alojou-se debaixo de uma marquise e foi atingido pelo brilho da sandália dourada, exposta na vitrine que alarmava promoção em balões de cartolina. O ímpeto foi tão fulminante que sequer pensou no tamanho dos pés da mãe, apontou a sandália à vendedora, pagou à vista e pediu para embalar.
Sentiu-se extremamente desconfortável ao entregar a caixa prateada a ela, que, emocionada, abriu com os dedos trêmulos o presente do filho. Ao bater os olhos nas sandálias, a mãe já havia percebido que não eram do seu número. Sorriu tímida e guardou-as na caixa, sem jeito.
Paulo insistiu que ela as calçasse, para assegurar se caíam bem, se eram confortáveis. Quando a mãe vestiu o par, e ele viu sobrar dois dedos de solado, Paulo se frustrou tanto que mal pôde encará-la: ``Como pude errar o número da minha própria mãe?!``. Para contornar o mal-estar, ela disse que voltaria à loja e trocaria por outras. Aí a lembrança solapou Paulo de vez: a vendedora explicava não ser permitida a troca, as sandálias estavam na promoção.
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Numa quarta-feira de dezembro, jantávamos yakisoba. O macarrão escapava da minha boca quando toquei o assunto ``festas de fim de ano``. Brinquei, tentando adivinhar o que ele me daria de Natal. Um colar de pedras caras? Um perfume francês? Uma câmera digital?
Paulo enviesou os olhos e disse que não me daria nada. Justificou sardônico que ele em si já era um baita de um presente. Ri e concordei.
Eu sou do tipo que gosta de dar presentes. E mesmo sabendo que Paulo não retribuiria o meu, planejei um mimo para ele: Comprei uma caixa vermelha e nela guardaria pequenos quadros de fotografias da família: O pai de calção e óculos de sol na Praia do Futuro. A mãe de saia florida lavando o cachorro no tanque. A irmã mais nova sentada num pico de duna. O primo de cabelos cacheados dedilhando um violão. O avô encimado num jipe. Os pais recém-casados de braços dados no calçadão. A família reunida na varanda da casa de praia. E o Paulo abraçando o irmão de camisas listradas.
Aí meu celular tocou. A moça da loja de molduras avisou que as fotos não ficariam prontas tão cedo. Uma chuva parou a cidade e causou um enorme contratempo nas entregas. O material da moldura só estaria disponível depois do Natal.
Aí o Natal chegou. Sorrindo, depois da ceia, expliquei a Paulo o fracasso do meu plano e entreguei-lhe caixa vermelha vazia — amarrada com fita. Paulo abriu e, com a visão da caixa oca, não ficou surpreso. Disse que não importava; os quadros eram só fantasmas impressos dentro de uma moldura. Paulo já os tinha em vida.
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NATÉRCIA PONTES é cearense e mora em São Paulo. É autora do livro Az Mulerez (edição do autor, 2004) e organizadora da coletânea Semana (Hedra, 2007). Contribuiu para algumas publicações e escreve no blog natercia.blogspot.com.
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